Que a sorte é arisca, já todos sabemos. A sorte roda e raramente obedece ao desejo. Piores são as mutações da sorte, nem que sejam as de natureza metafórica, baseadas no critério da raridade, tendo transformado a deusa homónima em sinónimo de riqueza, vulgo fortuna. O culto de Fortuna sobreviveu à queda do Império Romano do Ocidente e manteve-se durante a Idade Média, sendo abundantes as representações artísticas dos símbolos da deusa (a roda) e dos atributos (a venda que lhe cobria os olhos, promessa de não discriminação na escolha dos afortunados e que foi tomada de empréstimo pelas representações da justiça).
A sorte é demasiado tentadora para que os poderes deste mundo não se interessem por ela. Os representantes do outro mundo neste também não descuraram o tema. As inúmeras representações de Fortuna foram progressiva e catolicamente encaminhadas para a Fortuna Virgo e estandardizadas no minimalismo das representações de Virgens locais, todas diferentes e todas iguais à medida que a comunicação dos standards se difundia. Sobraram os fenómenos mais originais e desafiadores das representações autorizadas pelos hierarcas religiosos: as Nossas Senhoras do Ó, as Virgens negras, nem sempre fumadas ou torriscadas mas genuinamente em contradição com as cores dos arquétipos da vulgata.
Já os poderes terrenos viram na exploração da sorte uma actividade económica muito rentável, passível de monopólio e da respectiva concessão. A sorte foi jungida à moral e passou a puxar pesados tributos, no mais rentoso mungir dos impostos do pecado.
Passando a sorte a monopólio público, têm sido muitos os audazes empreendedores privados que combatem denodadamente a asfixiante presença do Estado numa actividade da qual a livre empresa foi injustamente expulsa. A sorte privada é, por natureza, clandestina, vive à margem da lei, é perseguida por fiscais, síndicos e polícias.
Em tempos recentes, os campeões da iniciativa privada encontraram na internet uma nova América onde as promessas de liberdade a conceder à exploração comercial da sorte se concretizam longe dos olhares indiscretos do Estado e dos seus sequazes. Mais uma razão para louvar o artesanato da sorte clandestina, feita de discretas visitas porta a porta, de talões e canhotos mal impressos em papel desbotado, de palavras ciciadas em vãos de escada, umas de consolo, muitas de promessa, de notas passadas dentro de envelopes reutilizados, com mais dedadas de gordura do que as recolhas de impressões que constam dos ficheiros dactiloscópicos da PJ.
A sorte clandestina não desdenha a força do monopólio público. Muitas lotarias, rifas, sorteios e outras modalidades de “sai sempre!” aproveitam o poderio e a publicidade do monopólio estatal e funcionam com base nos números sorteados dentro da lei. Conheço uma destas parcerias público-privadas que já educou dois filhos, sustenta cinco netos e já distribuiu uma receita do jogo clandestino em percentagem muito superior à feita pelo monopólio público. A constatação é desinteressada porque, nunca tendo jogado nesta PPP, também nunca nada ganhei. Mas todas as manhãs dou os bons-dias à vizinha e promotora que, sempre galante e não esquecida de outros tempos e de outras glórias, me responde com cortesia profissional: “Quer deitar?”
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990