Estômago, péssimo estômago – assim se veio a revelar o da crítica diante do livro Eu e os Políticos. É difícil acercarmo-nos da portada do mais recente volume de memórias do antigo diretor dos semanários Expresso e Sol – onde se inscreve um sinal de perigo – sem escutarmos, ainda que amortecidos pela passagem do tempo, os ecos da polémica produzidos pelo livro anterior. Este Eu e os Outros, mais equilibrado, mais sereno, menos indiscreto, acolhe um reportório de experiências relacionais situadas em diferentes campos: a infância, a arquitetura, o jornalismo, a amizade e o seu contrário, (suas teorias), o quotidiano. Se o livro anterior, recebido com tonantes críticas, evoca um terramoto, este novo livro, percorrendo diversos registos na escala das vivências do arquiteto e jornalista, faz pensar num sismógrafo que vai indicando movimentos subterrâneos que fazem prever catástrofes futuras, mas no presente deixam apenas sinais, ainda que muito percetíveis: a degradação das sociedades dos tempos modernos, organizadas na forte dependência das redes digitais de comunicação, a corrosão do permanente, do difícil, do trabalhoso. Leia-se, por exemplo, “Livraria ‘vira’ salão de beleza”.
Não é um álbum de retratos, mas bem poderia ser: há nele figuras bastantes para o compor, a começar pelo núcleo familiar: o “pai carola”, luminoso e indomesticável, amante de montes e vales e da ida ao fundo das coisas; uma mãe não menos carola, com nome comprido, avessa a festas e nada surda ao apelo dos sapatos, meticulosamente guardados em sobrepostas caixas de cartão, num alinho que o olhar transfigurador do miúdo JAS fazia coincidir com “os parques de contentores que existem nos portos”; o tio historiador José Hermano Saraiva; um irmão inventor do concurso antipalavrão (e se doía!). Ao pai, o ensaísta, crítico e historiador da literatura portuguesa António José Saraiva, surgido aqui em definidas pinceladas que misturam as tintas da razão com as do coração, à maneira de um puzzle cujo contorno gradualmente se vai definindo, dedica o fundador do Sol um espaço apreciável. Recorda, com contida comoção, os encontros em desconhecidas estações de comboio: “Quando éramos nós a chegar primeiro, já sabíamos que, na altura em que víssemos um monte de tralha a avançar sozinho pela gare, era o nosso pai”.
Depois há as figuras públicas, e se de algumas nos é dado apenas um breve perfil – o suficiente para as tirar pela pinta -, outras erguem-se de corpo inteiro em poucas penadas. É o caso de José Oliveira Costa, secretário de estado das Finanças, futuro líder do BPN, captado contra um fundo esmorecido, lúgubre, a combinar com a farpela enverrugada, e emoldurado por papéis e mais papéis: “Um homem de rosto chupado e corpo franzino, quase enfezado. Correspondia perfeitamente ao tipo físico do burocrata que era suposto encontrar naquele cargo: fato completo amarrotado de cor cinzenta, ar algo resignado mas aparentando total dedicação à causa pública e aos interesses do patrão: o Estado”. Marinho e Pinto, enérgico, sem molduras nem resguardos, é outro dos retratados. Com Vicente Jorge Silva, forma uma espécie de díptico positivo, o único. O gosto da nitidez, por vezes quase telegráfica, não exclui a subjetividade de um espírito subtilmente irónico que não recua diante da fronteira do politicamente incorreto nem das palavras que o capitalismo procurou tirar do uso: secretária, empregado…
Há também retratos de anónimos, alguns deles dignificados nos seus pequenos gestos só aparentemente desimportantes, que são traçados à maneira de pequenas odes e louvores. E interessante é observar que a algumas das pessoas anónimas que aqui fazem a sua aparição somaria o autor as falas, quer dizer, cede-lhes a voz, dá-lhes autonomia vocal, carnalidade, relevo. É o caso do polícia que lhe promete o improvável: “Tenho lá a saca de carvão para o doutor. Se soubesse que o via tinha-a trazido…” Convém incluir também no álbum o “homem pós-tecnológico”, sempre sem tempo, empenhado em nadas, culturalmente malnutrido: “Debica[m] na informação como as galinhas comem o milho: grão aqui, grão ali”, sendo alguns incapazes de cacarejar sequer o ano em que foi implantada a nossa República – “Um mais afoito ainda atirou uma data: 1976”. Parece decalcado da ficção, o homem do futuro. Ei-lo, em “ação”: um indivíduo que não sai da frente do ecrã do computador, exercendo a profissão a partir dali, recolhendo informação na internet, relacionando-se com amigos através das redes sociais, encomendando as compras por email, fazendo sexo virtual, vendo filmes, jogando videojogos… Ora, hoje já há quem viva quase assim. Esta terrível imagem de ficção já faz parte da atualidade. Mas será isto viver?”
A soma dos episódios em que participam estas figuras vem compor o retrato do próprio José António Saraiva: olhar de ver para longe e para lá, nariz torcido à pose, ao artificial, a bata branca do analista político trocada por um fato mais provocatório, aberto às zonas mais finas da paleta do humor. Muitos são os laços que de tantas maneiras o ligam aos outros: a perplexidade, a estranheza, a incompreensão, a admiração, a gratidão, a irritação, a mágoa.
Este livro não é um romance, género já praticado por José António Saraiva, mas não lhe faltam lances aventurosos que nos suscitam aquele “riso em itálico” de que falava Pessoa nem histórias (algumas de almanaque, como a que termina com modos improváveis de ganhar leitores) – com diferentes espessuras e a evoluírem a diferentes velocidades narrativas – que nos prendem, nos comovem e nos divertem. Sirva de exemplo “A saca de carvão” ou “Uma víscera na garganta”, hilariante, capaz de nos arrancar gargalhadas sucessivas. É uma história que como a Nau Catrineta, ali evocada, tem muito que contar.
Não é, ainda, um tratado de psicologia coletiva, mas acham-se aqui modos nossos de sermos e de não conseguirmos ser – a portuguesíssima inveja pode bem fazer as vezes de um travão. Tão-pouco será um guia turístico, embora o visitante só tenha a ganhar com as suas sugestões, seja na área da gastronomia (as vísceras de pato são iguaria a evitar ou mesmo a repelir), seja na dos transportes. Nem um catálogo de imagens sonoras, mas há uma que fica no ouvido: o ruído de um autoclismo, insistente, repisador, maldoso, estragador de noites. A descarga, que dava ao Expresso, jornal que dirigiu por mais de 20 anos, tratos de polé, acontecia semanalmente no programa A Noite da Má Língua, apresentado por Júlia Pinheiro, que aqui se “descai”. Nada disto e tudo isto. Eu e os Outros é “uma espécie de memórias”, assim o designa imprecisamente o autor. Lê-se de uma assentada este livro. A prosa, que recusa rendilhados, torturas e artificialismos, é límpida e fluida, de uma elegância desenvolta. E sabe declinar o tempo: os minutos televisivos consagrados ao futebol, haja jogo ou não (“E para quê? Qual a produtividade disso? O que se aproveita dali?”), o tempo que nunca lhe faltou, aquele pretérito a que sempre se volta, o tempo ganho e o tempo perdido, o tempo que tudo desfaz e de que tudo é feito, o tempo vivido que persiste em nos habitar.