O campo de refugiados de Moria na ilha de Lesbos, Grécia, é considerado por muitos o espelho da incapacidade da Grécia e da União Europeia para gerir os fluxos de migração que lhes chegam à porta. O Governo grego está deliberadamente a privar pelo menos 140 crianças refugiadas gravemente doentes do “tratamento médico adequado” em Moria, denunciou a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras.
“Estas crianças, com quadros de doenças cardíacas, diabetes, asma, são obrigadas a viver em tendas e contentores em condições horríveis, sem higiene e sem segurança ao longo de meses no campo de Moria, sem receberem os cuidados de saúde e o cuidado médico especializado de que necessitam”, explicou esta quinta-feira Hilde Vochten, coordenadora dos MSF na Grécia, num comunicado de imprensa.
Vochten assinala que a organização tem estado em conversações com o Executivo grego para resolver a situação. “A falta de vontade geral do Governo de encontrar uma solução rápida e sistémica para estas crianças, incluindo bebés, é ultrajante – prejudica a sua saúde e pode ter consequências para o resto da vida ou mesmo a morte”.
Zahra, por exemplo, uma criança afegã com apenas 6 anos a viver no campo de refugiados daquela ilha sofre de autismo e problemas mentais. Não há lugar para ela em Moria. “No lugar em que vivemos não há água e quase não há eletricidade. Não há espaço suficiente para ela brincar”, contou a sua mãe aos MSF. Ambas vivem num pequeno compartimento num quarto que alberga dezenas de requerentes de asilo, sem qualquer privacidade, segundo a organização. Os sanitários e a torneiras de água também são partilhados.
Moria, que não tem capacidade para receber nem 3 mil pessoas, acolhe atualmente 19 mil. Numa era digital em que tudo se classifica – os hóteis, os restaurantes e Ubers – ao digitar-se “Moria Camp” no motor de pesquisa do Google, o resultado é, também sobre o campo de refugiados, uma review de 2,3 estrelas. Uma classificação ainda assim elevada para uma estrutura que não dispõe de escolas e que deixa muitos migrantes a dormirem em tendas durante o rigoroso inverno das ilhas gregas, sem acesso aos cuidados de saúde e higiene básicos.
Mohammed, de quase 3 anos e outra das crianças cujas histórias são contadas no relatório ontem divulgado pelos MSF, sofre de distúrbios cerebrais e vive numa tenda com os pais sem eletricidade ou aquecimento. “Devido à doença [Mohammed] está a ter constantes dores de cabeça e não fala muito”, relata a mãe da criança aos MSF, que acrescenta que ela e o seu companheiro tentam fazer com que Mohammed fale. “Mas sempre que ele tenta, [só] balbucia”, conta. “As casas de banho e os duches estão longe e não há água quente para o lavar, por isso só o banhamos uma vez em cada duas semanas”.
A mãe continua o relato dizendo que os médicos sugerem que mantenha a tenda num bom estado de higiene: “É impossível. Tentamos manter a nossa tenda limpa mas quando chove há lama por todo o lado”. Os MSF sublinham que não existe tratamento médico especializado para as crianças refugiadas com doenças crónicas e complexas no campo de Moria – e que este não está sequer equipado para o providenciar. O mesmo se passa com o hospital público de Lesbos, que não tem capacidade para receber este número adicional de pacientes e onde alguns dos tratamentos especializados não estão disponíveis.
Em julho de 2019 o Governo de Kyriakos Mitsotakis, do partido de direita Nova Democracia, revogou o acesso ao sistema público de saúde para requerentes de asilo e pessoas não-documentadas a chegar à Grécia – o que significa que há 55 mil pessoas sem cuidados médicos, em números da organização humanitária.
Mesmo que o fluxo migratório a chegar ao portões da Grécia, vindo da fronteira com a Turquia, tenha diminuído consideravelmente – de um milhão em 2015, para 50 mil em 2019 – a Grécia ainda não arranjou solução para a miséria humana em que vivem os milhares de refugiados no país. Seja pela ineficácia das estruturas do Estado, como argumenta o jornalista grego Thimio Tzallas no Independent, seja pela simples falta de vontade política de que os MSF acusam a Grécia.
Segundo aquele jornalista, em outubro de 2019 o Estado grego ainda só tinha utilizado um quarto dos fundos fornecidos pela UE para a assistência aos refugiados. A situação vivida em Lesbos não prejudica apenas os migrantes. Na quarta-feira, 3 mil manifestantes juntaram-se em Mitilene, capital da ilha, fazendo greve contra as condições no campo de Moria. Farmácias, estabelecimentos comerciais, bombas de abastecimento e algumas clínicas e escritórios de advogados fecharam em protesto. “Chega de prisões para almas humanas no Norte do Egeu”, lia-se numa das faixas, segundo a BBC.
No mesmo dia, em Samos, outras 1500 pessoas também protestaram contra a sobrelotação da ilha, muitas destas preocupadas que a situação tenha um efeito negativo no turismo. “Na aldeia de Samos eles são mais do que nós” disse à estação britânica Giorgios, um bartender na ilha.
Desde de 2016 que a MSF não recebe fundos da UE nem do seus Estados-membros devido ao acordo migratório com a Turquia. “O acordo UE-Turquia colocou em risco o próprio conceito de ‘refugiado’ e a proteção que este oferece”, criticou na altura o então secretário-geral da MSF International, Jérome Oberreit.