O último dos escritores

O último dos escritores


Na literatura contemporânea emergiu, recentemente, uma nova figura: o último escritor. Já não se trata daquele que queria calar em si o rumor da linguagem mas de alguém que, completamente imerso na literatura, já não precisa sequer de escrever.


Há uma conhecida fórmula inglesa que costuma surgir em grande parte das análises como um dos sintomas de uma lenta modificação do campo literário: publish or perish. Glosada de diversas formas, talvez seja tempo, no entanto, de perceber que ela transporta consigo uma figura recente bastante interessante: o último escritor. Porque talvez já não se trate da necessidade de publicar incessantemente, sob pena de desaparecer o favor da crítica e dos leitores, mas de manter uma relação económica com o tempo, o último escritor é aquele que nada mais faz que não seja escrever – sendo isto, na realidade, o menos interessante.

Quem ouça na formulação “último escritor” uma referência a Maurice Blanchot, um dos maiores nomes do pensamento do século XX, ficará, no entanto, decepcionado. Porque o escritor que já não escreve, que se retirou da escrita, cujo fantasma assombrou grande parte da produção literária moderna, cedeu o seu lugar ao escritor que está constantemente a escrever, mesmo que isso já não signifique nada de concreto – e não precisa de corresponder: o livro tornou-se, doravante, supérfluo. O silêncio intempestivo e eloquente daquela figura negativa, por sua vez, que correspondia a uma linha de fuga da obra e que, de certa forma, era ainda parte desta, desapareceu para dar lugar a uma tagarelice constante que se substitui a qualquer obra e que, na realidade, a torna redundante: já não é preciso publicar nada, basta saber gerir o tempo, prometer, para breve, uma outra obra, falar de novos “projectos” que estão aí, quase a chegar, na iminência de um futuro que se esgota na formulação da sua possibilidade.

É desta forma que o nosso último escritor é uma espécie de negativo, de figura reactiva que começa a ser desenhada, noutros locais, na década de 80 do século XX – já Lyotard diagnosticava essa doença, essa injunção a ser comunicável; e que podemos traçar, quase ponto por ponto, a contraposição entre ambas as figuras: de um lado, a maldade secreta, os fins inconfessáveis, que faz com que o poeta se torne “o amargo inimigo da figura do poeta”, que responda apenas a uma busca obscura; do outro, a bondade pública, a afirmação continuada da necessidade da literatura (mas quanta maldade há nesta bondade, quanto de inconfessável e vergonhoso ela não trai); de um lado, uma interrogação que faz com que cada livro “decida absolutamente dela” (da literatura), “longe dos géneros, fora das rúbricas”, do outro, a certeza de uma função – social, histórica, académica – que é necessário sublinhar e preencher; de um lado, uma certa pobreza e um certo vazio, uma fúria, uma solidão maldosa; do outro, um monstro bem educado e domesticado.

O último escritor, aquele que ultrapassou a necessidade da obra, é a literatura no seu estado de apoteose. Por um desses estranhos paradoxos, no momento em que ele não faz outra coisa que não seja escrever, a literatura, agora chamada ficção, coloca a publicação do lado do supérfluo. E isto inaugura toda uma nova economia onde o que mais importa é esta familiaridade, uma relação pessoal com o escritor – que se conhece, com quem se fala, a quem se pede a opinião. Como dizia uma reportagem há uns anos sobre uma mesa redonda com escritores num desses múltiplos festivais: “nem sequer se falou de livros”.