A história é mais ou menos conhecida. Atalhando a direito em direção aos factos – exercício que se provaria impossível nas mãos de um contador de histórias como Fellini – terá sido por volta dos 19 anos que Federico Fellini, um jovem nascido a 20 de janeiro de 1920 em Rimini, cidade costeira do norte de Itália, voltada para o Adriático, se mudou para Roma. Acreditava a sua mãe, que para estudar Direito. Mas não. “A minha mãe era romana. Assim que cheguei a Roma, tive a sensação de que estava em casa. Agora considero Roma o meu apartamento privado”, dizia Fellini numa entrevista à New Yorker, em 1965. “As cidades são como corredores. Roma é ainda a mãe”.
Por essa altura, já 8½ se tinha inscrito como marco, e não só na obra de Fellini (deu-lhe um Óscar de Melhor Filme Estrangeiro; mais um, o terceiro de quatro), abrindo caminho para uma nova fase em que real e imaginado passavam a fazer parte de um mesmo plano. Mas já lá vamos, que a história que contamos é ainda a do início. Instalado em Roma, Fellini não chegou alguma vez a estudar Direito – nem Cinema, de resto. Escreveu o seu biógrafo Hollis Alpert que não há registo de que alguma vez Fellini tenha chegado a frequentar a universidade, apesar de se ter matriculado. Os desenhos com que se entretinha desde criança passaram a ser a sua forma de sustento: começou a trabalhar como cartoonista, atividade que, à parte de uma breve experiência como jornalista que depressa largou por tédio, alargou à escrita de peças de humor para jornais – assinou uma coluna intitulada Vão ouvir o que tenho para vos dizer?
Era o tempo da II Guerra e Fellini escapou-lhe. Com a cidade à procura de se reerguer após o seu fim, abriu juntamente com Enrico De Seta uma pequena loja de caricaturas – conta-se que populares entre os soldados americanos que, prestes a regressarem a casa, procuraram levar consigo uma recordação da Europa para as famílias. Foi pela porta dessa loja que um dia lhe entrou Roberto Rossellini, que o convidou para escrever diálogos para o filme que tinha em preparação: Roma, Cidade Aberta, em alusão ao dia 14 de agosto de 1943, em que a cidade se declarou aberta pelas forças alemãs que a defendiam.
Como na cidade, no país, também na forma de fazer cinema a guerra tinha deixado as suas marcas: a Cinecittà era trocada pelas ruas no movimento que seria batizado de neorrealismo italiano e que teve em Roma, Cidade Aberta um dos seus expoentes máximos. Vencedor do Grande Prémio em Cannes em 1946, o filme de Rossellini daria no ano seguinte a primeira nomeação a Fellini para os Óscares, por Melhor Argumento, partilhada com Sergio Amidei. Estava criado o Fellini-argumentista, que não demoraria a fazer-se mais do que isso no cinema: em 1950, sem escola, estrearia o seu primeiro filme, correalizado ainda com Alberto Lattuada, Luci del Varietà (Mulheres e Luzes). Em 1953, e já a título individual, recuperaria o cenário de Rimini, para I Vitelloni (Os Inúteis).Título repetidamente citado por cineastas de Kubrick a Scorsese, aquele em que iniciou uma colaboração de longos anos com o compositor Nino Rota, em que acompanha um grupo de jovens italianos por uma cidade com reminiscências da cidade natal do cineasta – a um cenário semelhante regressaria em Amarcord, obra de 1973 habitualmente descrita como a mais autobiográfica entre a filmografia de Fellini, mas que não será possível pensar sem olhar antes para a viragem da década de 1950, em que se estreou na realização, e a seguinte, com o A Doce Vida (1960).
À época, dizia Pier Paolo Pasolini que, não sendo Fellini Chaplin, Eisenstein ou Mizoguchi, La Dolce Vita era demasiado importante para que fosse discutido como se discute qualquer outro filme. E via-o já como “inquestionavelmente um autor, mais do que um realizador”. Mas iria mais longe Fellini, que o projeto Criterion Collection descreve hoje como “um dos maiores cineastas modernos”, “um maestro maior do que a vida” que “criou um estilo cinematográfico inimitável, combinando carnaval surreal com crítica social incisiva”. O estilo que deu o de outra forma indefinível adjetivo que constitui um dos maiores legados do cineasta italiano: felliniano.
Ainda sobre o mesmo filme, escreveu Jonathan Jones no Guardian já em 2004 que “Fellini fez o melhor filme sobre os anos 60 antes de os anos 60 começarem”, para explicar: “La Dolce Vita faz supostos clássicos como Blow Up [1966, Michelangelo Antonioni] e Darling [1965, John Schlesinger] parecerem derivativos”. Acrescentava ainda, mais adiante mas sem largar esse mesmo filme: “Fellini antecipa a nossa cultura do voyeurismo universal. Toda a gente está a olhar – para celebridades, para o glamour, para si própria. No final de La Dolce Vita, um grupo de foliões dissolutos vê um peixe gigante na praia. Os seus olhos enormes e vazios estão bem abertos. ‘Mas, vês, ainda está a olhar’, diz alguém”.
Mas La Dolce Vita não ficaria como o seu filme maior ainda. O caminho aberto por esse filme levaria Fellini àquela que é descrita como a fase seguinte da sua obra, inaugurada por 8½ (1963). Num tempo em que se havia já libertado das amarras da definição do neorrealismo, Fellini foi-se construindo (e à sua cinematografia) em contracorrente num tempo em que o cinema se queria político, mais político. Talvez o seu grande gesto político tenha residido aí precisamente: fazer filmes que não fossem políticos. “Não há sentido em falar de intenção filosófica. No final de cada filme não me lembro de quais eram as minhas intenções. As intenções são apenas instrumentos que nos põem na condição de fazer alguma coisa, de começar”, dizia em 1965 numa entrevista à Playboy, recuperada no livro Frederico Fellini: Interviews, editado em 2006 pela University Press of Mississippi, com edição de Bert Cardullo.
Como título final de 8½ Fellini deixou o título de trabalho desse que designava assim por ser o seu oitavo filme (e meio). Para essa fase que não seria ainda a final da sua obra – viriam ainda Satyricon, o filme televisivo Os Palhaços, Roma, Amarcord, antes do derradeiro filme, La voce della luna, estreado em 1990, três anos antes da sua morte – terá sido fundamental a descoberta da obra do psicanalista Carl Jung.
A repérage começou sem que tivesse escolhida sequer a profissão do seu protagonista – um artista a braços com uma crise criativa, que acabaria por ficar como um realizador, como um alter-ego do cineasta. Guido Anselmi, num desses papéis eternizados por Marcello Mastroianni (ator recorrente nos seus filmes, juntamente com Giulietta Masina, com quem o realizador foi casado durante 50 anos). Um filme entre o passado e o presente, entre memórias, sonhos, fantasias, desejos, um filme “verdadeiramente por todo o lado”, como o descreve Nigel Andrews num texto publicado no Financial Times a propósito do centenário do seu nascimento. “Agora realista, agora fantástico. […] O filme dentro do filme, o drama-fantástico com laivos de sci-fi que parece tão colossal e vago quanto aquele monstro marinho de Dolce Vita, que não parece terminado. ‘Não tenho realmente nada para dizer’, declara teimosamente o herói, ‘mas quero dizê-lo ainda assim’”.
Na mesma entrevista à Playboy, quando confrontado com alegações de amigos que contavam que muito do que dizia era inventado, ou mesmo mentira, Fellini respondeu: “Qualquer pessoa que viva, como vivo, num mundo de imaginação tem de fazer um enorme e anti-natural esforço para ser factual no sentido comum. Confesso que seria uma péssima testemunha em tribunal por isto – e um terrível jornalista. Sinto-me compelido a contar uma história da forma que eu a vejo, e essa raramente é a forma como aconteceu realmente, nos seus detalhes documentais. […] Se me quiser chamar um mentiroso nesse sentido, então respondo que é indispensável deixar que um contador de histórias colorir a história, expandi-la, aprofundá-la, dependendo da forma que sente que tem de ser contada. Nos meus filmes, faço o mesmo que na vida”.