Largas extensões de deserto, onde Estados falhados ou autoritários partilham fronteiras porosas. Senhores da guerra, milícias e extremistas islâmicos que aproveitam esta fragilidade, tecem alianças complexas e voláteis entre si, enquanto tropas estrangeiras tentam contê-los, sem sucesso. Tudo num contexto de miséria, crise humanitária e aumento dos conflitos étnicos, em regiões onde a ausência de governação é quase absoluta. Se a situação no Sahel soa a déjà-vu, não estranhe: estes foram alguns dos ingredientes-chave da expansão do Estado Islâmico (ISIS na sigla inglesa) no Iraque e na Síria, em meados de 2014 – aos quais se junta o fluxo de cocaína na região, financiando milícias e grupos jiadistas.
“Há o perigo real de que os jiadistas estabeleçam um califado, uma espécie de Estado Islâmico no Sahel”, alerta ao i Felipe Pathé Duarte, especialista em contraterrorismo. Aliás, um dos grupos extremistas na região é mesmo uma filial do ISIS, o Estado Islâmico no Grande Sara (EIGS), que o Presidente francês, Emmanuel Macron, declarou como principal alvo das suas tropas no Sahel, a semana passada, numa cimeira em Paris com os seus aliados regionais e antigas colónias: Chade, Burkina Faso, Mali, Mauritânia e Níger. Até então, o foco eram grupos ligados à Al-Qaeda, que se fundiram sob o nome de Jama’a Nusrat ul-Islam wa al-Muslimin (JNIM), e os seus aliados do Ansar ul-Islam, no Burkina Faso.
O ano de 2019 foi o mais mortífero no Sahel desde 2012, quando uma coligação de tuaregues e jiadistas tomou o norte do Mali, antes de serem derrotados pela intervenção francesa. Quatro mil pessoas foram mortas na região o ano passado – cinco vezes mais que em 2016. Isto coincide com o aumento do apoio logístico dado pelo Estado Islâmico às suas forças no Sahel – ao mesmo tempo que o EIGS reforçou os laços com fações do Boko Haram, na Nigéria. “O quartel-general do ISIS tomou conta do EIGS. Pode ver-se isso na sua propaganda, nas suas capacidades técnicas”, garantiu à France Press um analista que se manteve anónimo, por ser alvo de ameaças.
“Dizemos que erradicámos o Estado Islâmico do Iraque e da Síria. Será que as pessoas se questionam para onde é que eles vão?”, disse em entrevista à Al Jazira Mahamat Saleh Annadif, que lidera a missão de manutenção de paz das Nações Unidas no Mali, a Minusma. A própria organização refere-se à missão como “a mais perigosa do mundo”, com mais de 200 baixas desde 2013. “Há uma brisa na direção do Sahel”, avisou Annadif.
É que “desde 2011 que o arsenal de Muammar Kadhafi circula no Sahel”, lembra Pathé Duarte – muitos dos tuaregues que se insurgiram em 2012 lutaram como soldados do ditador líbio antes de regressar ao Mali. São mais de 60 milhões de armas, segundo as estimativas da ONU. “O Mali, de momento, é uma barragem. Se ceder, arrisca inundar o resto de África, bem como a Europa”, avisou o líder da Minusma.
Sofisticação Ainda há duas semanas, militantes do EIGS mataram 89 soldados num ataque a uma base militar do Níger, em Chinagodrar, depois de mataram outros 71, em dezembro, em Inates. Esta última base, protegida apenas por um muro de argila com pouco mais de um metro de altura, ficou sob pesado fogo de morteiros minutos depois de ser visto passar um drone de vigilância. Durante três horas, os soldados nigerinos, mal treinados e equipados, enfrentaram bombistas suicidas, enquanto eram cercados por atacantes que se moviam em carros blindados. “Os últimos ataques mostram que o grupo adquiriu capacidades de comando, controlo e coordenação que não tinha antes”, disse à AFP um militar preocupado.
Mesmo depois de chegarem os reforços, a probabilidade de os soldados nigerinos apanharem os responsáveis era baixa: o núcleo duro do EIGS refugia-se na região de Gao e Menaka, no Mali. E nas províncias nigerinas fronteiriças, onde fica Inates, contam “com células de combatentes locais que desaparecem entre a população depois de um ataque”, explicou à Al Jazira Abdoul Azizou, vice-diretor do Centro Nacional para Estudos Estratégicos e de Segurança do Níger. “Quando os militares saem para operações, não encontram ninguém”. Muitos são “caçadores furtivos, criminosos, traficantes” contratados para cada operação e com conhecimento profundo do terreno, explicou à AFP o investigador Mahamoudou Savadogo, do think tank senegalês CERADD.
“Sentimento antifrancês” Com cerca de 4500 tropas no terreno – foi anunciado o envio de mais duas centenas a semana passada –, França é a potência mais envolvida no Sahel, com uma missão própria, a operação Barkhane (ver infografia). Contudo, os seus esforços são dificultados pelo passado colonial. “O sentimento antifrancês ganha terreno no Mali”, lia-se numa manchete do site MaliWeb, este mês, que noticiava mobilizações em todo o país, incluindo na capital, Bamako, exigindo a saída das tropas de França. “Não é com o povo francês que estamos zangados, é com a política do seu Estado”, clarificou um dos presentes ao site, acrescentando que recusa abastecer nas bombas da petrolífera francesa Total. Muitos acusam França de só estar no país para ter acesso às reservas de petróleo do Sahel, concentradas na bacia de Taoudeni. “Querem que compreendamos que o quinto poder mundial, com todos os meios técnicos e tecnológicos que tem, não consegue parar bandidos em motos?”, questionou o manifestante.
“Há uma lógica antineocolonial nestes países. Mas também há um extremar da situação que torna necessária a presença francesa”, considera Pathé Duarte. Já os Estados Unidos estão em retirada da região. Washington questionou na semana passada o impacto das missões no Mali e quer que a ONU mude de estratégia. “Temos de reconhecer que as missões de manutenção de paz não são a resposta às ameaças terroristas crescentes no Mali”, disse Cherith Norman Chalet, embaixadora norte-americana na ONU.
A crescente instabilidade na região está no radar há vários anos. Em 2018, o think tank International Crisis Group alertou que o tráfico de droga na fronteira entre o Mali e o Níger, o coração do Sahel, estava a gerar um nível de violência sem paralelo. Já este mês, a mesma organização defendeu uma intervenção criteriosa, em particular no Níger, notando que uma postura agressiva de combate ao tráfico pode não ter o efeito desejado e culminar na degradação económica na região e em ainda mais tensões.
O organismo assinala as diferentes posições em confronto sobre como intervir no Sahel: os que veem no combate ao tráfico a principal estratégia para conter o terrorismo e os que são mais reticentes, mesmo estimando que o contrabando represente um quinto do financiamento de grupos jiadistas. “O primeiro desafio é a fluidez entre muitos atores locais e a falta de clareza sobre quem está a fazer o quê. No norte do Níger, uma figura influente pode ser um traficante um dia, um rebelde no dia seguinte e um parceiro de jiadistas no terceiro dia. Os próprios traficantes podem alimentar as forças estrangeiras com informações falsas para acertar contas. Na prática, é mais difícil para as forças francesas e americanas evitarem ser sugadas para o confronto do que admitem”.