No lugar cimeiro de um pódio, uma rapariga enforcada. A mesma que nem dois minutos depois acordará de um salto de uma maca para a qual já tinha sido levada, numa celebração de vitória, entre as colegas. Todas iguais, e agora vão dar início à competição. Mais uma competição. Neste lugar, importa ser-se a melhor. A preferida. Para isso, far-se-á o que for preciso fazer, como se dir-se-á o que for preciso dizer. Emoções? Hão de se moldar, como se molda um corpo. É para isso que aqui estão, todas elas, ainda que não porquê nem para quê. Nem desde quando, e menos ainda como foram escolhidas. Suspeitamos, espetadores, que para ajudar a cumprir um qualquer plano utópico desenhado por estas duas mulheres que as instruem (Luísa Cruz e Vera Mantero), coadjuvadas por uma outra, a do apito (Mariana Tengner Barros), que um dia terá sido uma delas sem que alguma vez se entenda se ali continua por recompensa ou castigo.
“Essa cena inicial tem a veracidade do ato, do gesto, porque parece uma linguagem teatral de construção simbólica de uma coisa, mas por outro lado é logo desconstruída. Percebemos que afinal aquilo afinal não passa de uma representação, de um truque de representação”, diz o encenador John Romão que com Virgens Suicidas, que leva a partir de amanhã à Culturgest, em Lisboa, regressa aos palcos depois da pausa a que o obrigou a direção artística da BoCA bienal, que fundou e teve a sua segunda edição no ano passado. “Elas são desafiadas, provocadas pelas professoras para desacreditar nos seus sentimentos. Ou seja: ‘Se tiverem este impulso, vejam que isto não passa de uma representação errónea dos vossos sentimentos’”.
O lugar é uma casa. A casa da qual não se lembram de alguma vez ter saído, ao ponto de não terem ideia sequer do que existe para lá daquelas paredes. Cães? Um perigoso mundo? Outras casas? “Acho que lá fora só há casas”, dirá uma das raparigas. “[Lá fora não há] nada. Por isso é que estamos aqui”. Uma escola de ginástica, dança e representação que duas mulheres acreditaram poder ser uma escola para a vida destas raparigas como de todas as outras que por ela já terão passado sem que se entenda o que lhes terá sucedido.
Não demorará o espetador a perceber que de As Virgens Suicidas, obra de 1993 de Jeffrey Eugenides que Sofia Coppola adaptou ao cinema, terá chegado aqui o impulso para a que poderá parecer a única saída em liberdade possível. A repressão, essa é levada por John Romão e Michael de Oliveira (textos) ao extremo da distopia. A partir também de Mine-Haha, or On the Bodily Education of Young Girls (Mine-Haha oder Über die körperliche Erziehung der jungen Mädchen, no título original em alemão), de Frank Wedekind (1864-1918), publicado na sua versão final em 1903 e nunca traduzido para português. Uma novela em que o autor ficciona um manuscrito autobiográfico deixado por uma professora aposentada que, aos 84, anos decide suicidar-se. Nele descreve o sistema de educação e de socialização ao qual foi submetida.
A partir dos dois textos, John Romão criou um espetáculo que os transporta bem para lá de uma fusão. “O título é o que abre portas para um universo, para expectativas e sobretudo para um determinado domínio do corpo e da adolescência, da juventude”, diz o encenador que aqui decidiu explorar pela primeira vez um universo exclusivamente feminino numa peça.
Além daquelas atrizes, John Romão recorre a um elenco de adolescentes (nove raparigas, entre jovens ginastas e alunas de teatro) e um rapaz, a interpretar uma personagem cuja identidade de género é feminina. “Interessa-me explorar essas dimensões do corpo, a juventude, a experiência – as primeiras experiências, não só sexuais, as primeiras experiências místicas, muitas das vezes, ou espirituais. Interessa-me também pensar um bocado essas convenções que se vão estabelecendo e essas expectativas que existem a partir do momento em que apresentamos um corpo adolescente em cena, que é completamente diferente de apresentar um corpo de um adulto. Há outras expectativas. Há outras qualidades em potência nesses corpos”.
No caso, corpos que vão encontrando salvações – formas de libertação – possíveis. Sejam um beijo, sejam um suicídio. A partir de um lugar em que a normalização (dos corpos e das mentes) é o objetivo – houve ainda inspiração em dados históricos recolhidos do que no século passado foram as práticas tanto da Juventude Hitleriana quanto da Mocidade Portuguesa Feminina – John Romão destrói paradoxalmente estereótipos como o da família convencional d’ As Virgens Suicidas de Jeffrey Eugenides. “Gosto muito de escolher os ingredientes com que vou fazer cada criação e esses ingredientes vão condicionar tudo aquilo que possa já ter na bagagem. Neste caso, estava a trabalhar nestes textos, a ler estes textos, quando decidi que queria trabalhar só com mulheres – e com raparigas. Tive que negar uma série de coisas para entrar num caminho onde nunca tinha entrado. Nunca tinha trabalhado só com intérpretes mulheres em cena nem nunca me tinha focado apenas nessa questão do feminino”.
Gosta de se referir a elas como “gangue”. “São uma anti-família convencional. Gosto da ideia de gangue porque está sempre associada a estes coletivos marginais, ou automarginalizados, que criam um sistema que é fechado. Ao mesmo tempo, o gangue é também uma forma de oposição social, uma ordem alternativa do coletivo. Ou seja, é mesmo um mundo à parte aquele em que elas vivem como os gangues, dentro dos seus ideais. Há sempre esta ideia de utopia ao mesmo tempo”.
Ao mesmo tempo que a violência, psicológica, no caso, sobre as raparigas. A violência que alimenta o isolamento – ou que vai nascendo dele. “Elas desconhecem o que existe lá fora – e nem sei se aquelas duas mulheres ainda se lembram do que é que existe lá fora, porque elas próprias alimentam a sua violência. Alimentam e sofrem da sua própria violência também, mas é quase o pulmão que elas encontraram para viver e que lhes faz sentido, com as suas ideologias sociais, políticas e filosóficas também sobre o corpo”.
Em que tempo estamos desconheceremos até ao fim. Como, à semelhança delas, nem por um segundo veremos apontada uma saída. “Interessava-me balançar sempre dois tempos: o passado e um futuro que não sabemos se é muito longínquo ou a começar amanhã ou já estar a acontecer sem nós sabermos”.