Sem noção dos mínimos


Ter Alberto João Jardim como arauto do rigor eleitoral interno no PSD e crítico da época do “tempo das chapeladas e da Francisquinha que paga 200 quotas a um” é algo a que julgávamos não ter o privilégio de assistir em vida.


A ânsia mediática, potenciada pela necessidade de sustentar o pulsar constante nas redes sociais e nos média, determinou a perda de noção dos mínimos que deveriam estar associados ao exercício de funções ou de intervenções públicas. Proliferam os exemplos de perda de noção de mínimos de sentido institucional, dos limites do exercício das funções e de ultrapassagem de linhas vermelhas de coerência, recato e senso. No limite, resume-se quase tudo a uma inacreditável falta de senso, tolerada pelas instituições, pelos média e pelos cidadãos.

Quantas vezes não se ouviu dizer que as pessoas fazem os cargos, entendendo-se como tal o exercício das funções inerentes? O problema é quando manifestamente exorbitam a sua órbita de ação institucional e projetam para domínios da competência de outros, de esferas particulares quando estão comprometidos com a prossecução do interesse geral ou, pior, afetam recursos de todos para fins particulares.

Ao longo dos últimos anos, em que há um inequívoco reforço do escrutínio, há de tudo. A começar por um Presidente dos Estados Unidos que utiliza as redes sociais de modo pueril, ainda que orientado para o cumprimento de objetivos eleitorais de afago de um certo imaginário norte-americano, tal como as crianças quando pretendem algo.

É normal que os comentadores, em especial os que não fazem mais nada na vida, exercitem este tipo de intervenção sem noção de memória, da sua condição pessoal e da existência de outras esferas individuais, que pensam, sentem e agem, mas a falta de noção de mínimos é grave em titulares de funções públicas. É claro que tudo pode ir com a espuma dos dias, na onda de uma sociedade cada vez mais digital, volátil e impessoal, mas não deixa de ser grave.

Ter um Presidente da República que afetuosamente fala sobre tudo e diz uma coisa e o seu contrário, por vezes em campos que são da órbita de outros, pode ser tolerado por via da dimensão do seu nível de notoriedade e popularidade, mas não é aceitável do ponto de vista institucional. É muito fácil, em diversas ocasiões, encontrar oscilações de posições presidenciais, entre um não comentar por ser da sua competência pronunciar-se sobre um documento final, que ainda não chegou a Belém, e condicionar o processo negocial, indicando como e por quem deve ser viabilizado, como aconteceu com o Orçamento do Estado para 2020. É uma total intromissão numa esfera que é da competência do jogo partidário e parlamentar – logo, não é a sua. Pode fazê-lo informalmente, na linha do toque das campainhas nas portas dos prédios, mas não pode dizê-lo institucionalmente. É não ter a noção.

Ter titulares de cargos internacionais, alegadamente acima dos interesses pessoais e nacionais, com intervenção partidária e política em que transportam para o que dizem e fazem o peso institucional das funções que desempenham, pode ser interessante para os próprios ou para os média, mas não faz nenhum sentido do ponto de vista das instituições e do exercício de funções públicas. Foi assim com Carlos Moedas como comissário europeu, o mais nacional dos comissários, que integram um órgão da União Europeia em que não representam os Estados-membros; continua a ser assim com Álvaro Santos Pereira, o atual diretor do Departamento de Estudos Sobre os Países da OCDE, que amiúde, qual impulso de sobrevivência política, vem a público para louvar a governação de Passos e Portas, de que fez parte, e criticar o atual perfil da governação em Portugal. Esta gente tem cobertura institucional para o que anda a dizer nos seus países com o peso e “credibilidade” das instituições que integram? Estas reveem-se no que é dito, com uma forte dimensão partidária e política, ao arrepio do seu quadros de competência e dos códigos de conduta? Uma vez mais, é não ter noção dos mínimos do exercício de funções públicas, em que o combate partidário e político não está no seu core.

Ter Alberto João Jardim como arauto do rigor eleitoral interno no PSD e crítico da época do “tempo das chapeladas e da Francisquinha que paga 200 quotas a um” é algo a que julgávamos não ter o privilégio de assistir em vida. É a suprema hipocrisia do político nacional com mais esquemas eleitorais que alguma vez existiu em democracia, useiro e vezeiro em não olhar a meios para atingir fins eleitorais, em colocar recursos públicos ao serviço de interesses partidários e contar com uma enorme complacência das autoridades para as suas práticas. Anos reiterados de falta de noção de mínimos institucionais, suportados eleitoralmente e acarinhados mediaticamente pelo exotismo da prestação política da personagem, em contraste com a vivência em particular, terão desembocado agora no porto da promoção das virtudes e do pudor. Mais vale tarde do que nunca, sobretudo depois de ter ajudado a perpetuar essa modelo de gestão nas últimas eleições regionais da Madeira, ao apoiar a reeleição de Miguel Albuquerque, agora de novo odiado por Jardim. É mais um em ziguezague, a contar com a falta de memória individual e coletiva.

O espaço mediático está pejado de gente assim, que não tem noção dos mínimos institucionais, que quando fala transporta consigo o peso das instituições em que desempenha funções e que conta com a anuência geral dos média, porque lhes dá jeito ter conteúdos, e das pessoas, porque são puro entretenimento inconsequente.

Não faz nenhum sentido não haver mínimos institucionais, porque isso significa que nas esferas individuais, como parte das comunidades, também não temos de os observar e, a ser assim, não há sociedade que possa subsistir sem regras ou com leituras de geometria variável, apenas em função de interesses particulares. Não perceber isto é não ter a noção do que se está a sinalizar para a sociedade. É grave, mas nadamos nisto.

NOTAS FINAIS

A LESTE DO PARAÍSO O Orçamento do Estado para 2020 foi viabilizado na generalidade, com os votos a favor do PS, a abstenção de PCP, Verdes, Livre, PAN e três deputados do PSD/Madeira e os votos contra de PSD, CDS/PP, Iniciativa Liberal e Chega. Convicto de que o cidadão comum não valoriza o excedente orçamental como instrumento para acorrer ao serviço da dívida nacional ou à emergência de um quadro internacional mais negativo, tal como o não fazem os ex-parceiros de solução governativa, agora convertidos em abstencionistas ainda mais envergonhados, não será grande ideia atribuir-lhes todo o crédito das melhorias orçamentais a introduzir para as pessoas e para os serviços públicos. O êxito do exercício eleitoral conseguido até 2019 não é perpétuo ou indolor, como se viu pelo crescimento do PAN.

A OCIDENTAL PRAIA LUSITANA O País está a ficar pastoso. No funcionamento, nos temas, nos comportamentos e nas narrativas, esgrimem-se perspetivas em função das posições, sem nexo com a realidade e sem sentido de compromisso para mudar para melhor. Os serviços não funcionam como deviam, os burocratas persistem e os impulsos de iniciativas, de transformação ou de construção positiva marasmam a contrariar os bloqueios. Quando não há resposta para o presente, projetam-nos para objetivos programáticos.

Escreve à segunda-feira