Não sendo Jorge de Sena o que se possa chamar um cultor de centenários ou dessa categoria de eventos a que chamamos efemérides, não lhes era indiferente nem as desprezava. Da própria temática comemoracionista fez contos e mofa ao chamar, numa das crónicas de “O Reino da Estupidez”, a atenção para um relevantíssimo centenário imperdoavelmente passado em claro: o centenário da vaselina. E se merecia ser comemorada, a vaselina: “aonde quer que seja difícil que um corpo aceite algo superior à sua medida, aonde quer que a pele humana solicite especiais cuidados, aonde quer que a moralidade determine que se engula o impossível – e a que ponto isso é requerido no nosso tempo! – lá está, em pessoa ou em metáfora nascida da grata memória dos humanos, precisamente aquilo cujo centenário se esqueceu. É certo que não era, ou não seria em número de séculos, um desses centenários tremendos…”.
O autor de “O Físico Prodigioso” era até da opinião que o hábito cívico de comemorar centenários, mesmo quando não se sabia ao certo a data do que se comemorava, tinha as suas vantagens, sendo uma delas a renovação do interesse pelo comemorando. Mas ia mais longe, alongando-se em considerações que guardam muito da sua actualidade: a cultura portuguesa nutria-se de centenários, sendo decisivamente impulsionada por eles. Era ver o rumo que tomaram os estudos camonianos depois do centenário possível de 1880 ou olhar para o Eça depois do seu centenário, mais encorpado, mais vestido a rigor e com uma apreciável fortuna crítica. É ver o próprio Sena, agora a aguardar volumes de académicas actas dos colóquios que lhe foram dedicados. O grande problema dos centenários, além de não se fazerem sem umas “criaturas” que, muitas vezes reunidas em grupo onomástico sonante, aptas a transformá-los em perigosas festas, era acabarem. Acabado o centenário, tudo como antes: o comemorado era devolvido à morte, as criaturas promotoras das festividades comemorativas à amnésia.
Num momento em que da cornucópia do centenário do nascimento de Sena parece não haver mais nada para sair, evoquemos Jorge de Sena. Não o Sena-poeta, o Sena-ficcionista, o Sena-camonista, o Sena-historiador da literatura, o Sena-ensaísta, como se pudesse o autor ser cortado à posta para rodar no prato de uma Academia cujos apetites são bem conhecidos. Sena, de uma abrangência e de uma inteireza totais, não é seccionável, é uma espécie de mistura transbordante.
Escritor completo mas não completado, a grandeza e a inteireza nunca ele as terá interiorizado de modo cómodo. Dir-se-ia que lhe faltou sempre aquela calma com que caiam as aves de Sá de Miranda. O seu retrato falado, e repetido pelos anos com algumas variações, é conhecido: um homem ansioso, intempestivo, temível, impertinente, ríspido, intratável, de uma agressividade e uma contundência quase intoleráveis. Enfim, o catálogo negro da sua reputação poderia estender-se mais e mais. É certo que Sena procurou ver-se livre dele de todas as maneiras possíveis, mesmo porque uma tal figura parecia bastar-se a si prória, como se ela criasse a desnecesisidade de textos a precisarem de ser lidos. A sua vasta tábua bibliográfica também não ajudava a mostrar uma outra face, mais serena, mais terna, incapaz de deixar sem resposta quem o procurava. Raro é o título que não seja, a respeito de amenidades, todo um invertido programa. Refiram-se apenas alguns – dos mais emblemáticos: Peregrinatio ad Loca Infecta, No Reino da Estupidez, Andanças do Demónio, Sinais de Fogo.
Uma coisa parece certa, para Sena o excesso era a medida. Conviver com esta medida pode suscitar as mais diversas reacções: perturbação, incomodidade, deslumbramento, espanto. Porventura, um espanto um tanto diverso daquele que experimentou Mário-Henrique Leiria aquando de uma visita a casa de Sena, vivia então o poeta em Araquara, no Brasil: “Abria-se uma porta, entrava um filho; abria-se uma gaveta, saía um filho, puxava-se uma cadeira, apanhava-se com uma encadernação no estômago, ia-se à janela, topava-se com um monte de in-folios. O diabo! Não havia onde pôr os pés, não havia onde colocar as mãos! Tropeçava-se em filhos, esmagavam-se brochuras! – e desfechava – De arrasar!”
Bem vistas as coisas e realizadas algumas permutas, o que se passa nesse edifício substancialmente habitado que é a sua obra, não é assim tão diferente, para não dizer que a atmosfera se adensa. Então, se entramos pela porta da poesia as semelhanças são inegáveis. Ainda não ultrapassamos as cercanias, encontramo-nos, portanto, nas imediações de um livro e já outros se interpõem no curto caminho até à entrada – livros publicados, livros por publicar, questões e engrenagens editoriais. Mal acabámos de entrar e já nos espera um “Aviso de Porta de Livraria”, o célebre limiar do livro “Exorcismos”, um “bilhete de Camões”, uma “carta aos filhos”. Dá-se um passo e topamos com um quadro verbal, outro logo adiante. Avança-se, ou tenta-se avançar, e tropeça-se na “A Cadeira Amarela de Van Gogh”. Vira-se a página, outro quadro, uma estátua. Para onde quer que nos voltemos, é uma multiplicidade de referências culturais, a formarem uma rede difícil de deslaçar. E se é verdade que as nossas mãos nem sempre sobram (não mexer, não tocar), também é certo que por vezes não há onde pôr os pés – Sena, tira-nos o chão. E quando assim não é, reserva-nos o chão áspero da História onde o nosso destino colectivo se joga. É este chão que pisamos nos contos de Os Grão-Capitães, de uma crueldade assinalável. Note-se, no entanto, que este cenário não se confunde com um espaço atravancado, ataviado de peças dispensáveis, de puro efeito. Densamente profundo, nada nele é decorativo.
E nada para Jorge de Sena parece ter sido fácil. Sentiu os rigores da ditadura e o peso da frustração, ao qual nunca se vergou. Ambicionava uma carreira na Marinha de Guerra e o mar transformou-se para o cadete Sena, excluído da Armada, numa “realidade sonhada certa em muitos anos de criança e depois vivida e perdida em meia dúzia de meses.” Engenheiro civil, ansiava por abandonar a condição de “escritor de fim de semana”, e essa condição amarrava-o mais e mais. Poeta ansioso de leituras críticas, somou desatenções em parcelas nem sempre reais que a distância a que o exílio o colocou fazia aumentar até aos limites do inconcebível. Leitor voraz, tratou de fazer odes aos livros que não podia comprar. Quis um barco-Portugal higienizado, mas não pode conter, pela voz do capitão do conto “A Grã-Canária”, que era preciso detergir, esfregar, higienizar, como se houvesse sabão ou água que afastassem a sujidade moral e social. Sonhou com um país livre, vertical e desmediocrizado e teve de se confrontar – sem tréguas – com o “país dos sacanas. “Esta porra triste”.