Haverá um “Kissinger in disguise” na Casa Branca?


Os comportamentos irracionais podem servir uma política racional, assim ela exista.


O uso da força por um Estado deve servir um determinado propósito político. O uso da força armada, causando destruição de bens, ofensas corporais e morte, segue as mesmas regras. O uso da força armada pelos Estados permite, por vezes, forçar uma negociação a partir de uma posição dominante, obrigando o adversário a considerar que a via negocial lhe permitirá obter ganhos (ou evitar perdas incomportáveis). O uso da força em apoio de uma estratégia negocial implica que esta exista e que alguém a controle. Com a chegada de Trump à Casa Branca, o improvável aconteceu e a fasquia do impossível tem sido sistematicamente elevada. Trump não é o primeiro Presidente imprevisível e sem filtro. Em teoria, estas características até podem ajudar a dar credibilidade a uma estratégia negocial baseada no uso da força. Nixon, por via de uma personalidade exuberante e de uma automedicação generosa, engolida com ajuda de copos de whisky, desempenhou na perfeição o papel de louco furioso capaz de semear cogumelos atómicos no Sueste asiático. Mas este papel era complementado pelo do tipo razoável com quem era possível negociar. Henry Kissinger apropriou-se do segundo papel e prosseguiu uma estratégia negocial com o Vietname do Norte, apoiada nas fúrias de Nixon: bombardeamento do Camboja em 1969, invasão do Camboja em 1970, ameaça de bombardeamento sistemático do Vietname do Norte nos anos seguintes, com possibilidade de uso de armas nucleares tácticas se preciso fosse. A coisa permitiu o acordo de Paris, de Janeiro de 1973, que marcou a retirada os EUA do Vietname, acordo negociado no ano das eleições presidenciais de 1972. Kissinger e o negociador vietnamita, Le Duc Tho, receberam o prémio Nobel da Paz em Dezembro de 1973. Tho recusou o dito e Kissinger, aquando da queda de Saigão, em Abril de 1975, tentou devolvê-lo.

Trump já se declarou merecedor do prémio Nobel da Paz. Na ausência, ao dia de hoje, de um “Kissinger in disguise” na Casa Branca, é de constatar também a falta de uma estratégia negocial que possa justificar a morte do hierarca dos Guardas Revolucionários do Irão. A primeira vaga de consequências é particularmente negativa para os interesses dos EUA: os iranianos, que contestavam o respectivo Governo, uniram-se contra um inimigo externo; a rua islâmica, da Turquia aos países árabes, esqueceu a cisão entre sunitas e xiitas e defende a expulsão dos militares dos EUA; a Rússia tornou-se, como já acontecera na Síria e está a acontecer na Líbia, no garante do equilíbrio político-militar face aos EUA (e será provável que a compra de sistemas de defesa antiaérea S-400 por Teerão venha a ser autorizada por Moscovo).

Por alguma razão o xadrez foi inventado na Pérsia. A diplomacia iraniana é particularmente sofisticada, como se viu pela reacção moderada ao ataque pelos EUA, reacção simbólica e para consumo da populaça. Já o controlo político do Iraque, Líbano, Faixa de Gaza, Síria e Iémen continua nas mãos de Teerão e saiu reforçado.

Mesmo com eleições presidenciais em Novembro, não há condições para um acordo entre EUA e Irão que possa ser vendido por Trump como uma vitória política. O abandono das sanções pelos EUA teria efeitos muito positivos na economia iraniana e permitiria aliviar o sofrimento da população. Mas qual seria a contrapartida a dar por Teerão? O acordo nuclear estava a ser cumprido e foi denunciado por Trump só porque era uma herança de Obama. Uma qualquer retirada iraniana de outros Estados será vista como uma perda de poder a troco do levantar de sanções que poderão voltar a ser reimpostas.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990