O argumento é de Dario Argento (Roma, 1940), cineasta de culto do cinema de terror (Suspiria, 1977), que entra no universo de Dylan Dog como faca em manteiga, secundado pelo argumentista Stefano Piani (Imola, 1965). Embora com paralelos narrativos com o cinema – os storyboards estão, aliás na vizinhança dos quadradinhos –, a BD conhece uma linguagem própria; e Argento, que, de resto, tem em Piani um colaborador em alguns filmes, não iria certamente arriscar-se a ‘borrar a pintura’ sem dominar essas competências, no que foi avisado. A história é consistente, e tem o twist para surpreender o leitor.
Tudo começa numa galeria de arte londrina, na exposição de fotografia subordinada ao tema do S&M, em que Dylan é atraído por uma mulher fugidia. A acção decorre no meio da aristocracia inglesa, vista como demasiado vetusta e moralmente corrompida, acumulando séculos de poder degradante sobre ‘os de baixo’. O exemplo dado a propósito dos whipping boys é particularmente expressivo. Trata-se de uma prática reservada à educação dos príncipes, um pouco por todo lado, da Europa ao Oriente, em que um rapaz do povo, companheiro de brincadeira e estudo era chicoteado por cada falta grave que o infante cometesse; dado o vínculo de amizade estabelecido entre ambos, presenciar o castigo era uma insuportável fonte de remorsos, e uma forma de o príncipe, no futuro, pensar várias vezes antes de cometer faltas graves. Na narrativa dá-se a entender tratar-se de um regime extensivo à nobreza, o que é uma fantasia. A antipatia de Argento pela aristocracia ‘de sangue’ é notória, pondo na boca de uma personagem as palavras do iluminista Giuseppe Parini (1729-1799): “não se deve celebrar o sangue da alma que definha” (p. 66). O motivo está, contudo, bem aproveitado.
Mas o melhor são os desenhos, o traço esguio do experimentado Corrado Roi (Laveno-Mombello, Varese, 1958); as cenas ‘bondage’ no teatrinho que acolhe as sessões são esplêndidas e vão ao limite da perversão. O mesmo se diz do final, de uma terrível beleza, sugerido pelo próprio Roi, que – de acordo com Piani – foi acolhido pelos argumentistas, por ser melhor que a ideia original de Argento, mais poderoso, mais “diabolicamente argentiano”, e que vale, só por si, todo o livro.
Uma palavra para o critério editorial de incluir um texto introdutório que situa o leitor, a cargo de João Miguel Lameiras e João Pedro Castello Branco, bem como breves notas biográficas sobre os autores, prática que deveria ser seguida por outros.
BDteca
Geneviève de Gaulle-Anthonioz. Mulher admirável, Geneviève (1920-2002) foi uma resistente francesa à ocupação nazi e posteriormente uma activista contra a pobreza e a exclusão. Sobrinha do General de Gaulle, foi deportada para Alemanha e encarcerada no campo de Ravensbrück, vivência que relatou no magnífico A Travessia da Noite (1998), livro publicado entre nós pela Editorial Notícias. A sua vida é contada em BD por Coline Dupuy e Jean-François Vivier, com desenhos de Stéphan Agosto. Editions du Rocher. Mónaco, 2019.
Hergé. A bibliografia sobre Hergé cresce em consistência. Biógrafo do criador dos Dupondt e argumentista de BD de alto coturno, Benoît Peeters publicou recentemente uma conferência em que revisita a personalidade do autor belga, procurando o homem na obra, com revelações inéditas, diz quem leu. Dans les Coulisses des Aventures de Tintin, Éditions Bayard, Montrouge, 2019.
Vasco. Os admiradores desta série da linha clara criada por Gilles Chaillet (1946-2011), passada na Itália do século XIV, podem revisitar uma edição especial de Ténèbres sur Venice (1987) em preto e branco, seguido de um extenso dossier sobre a cidade dos doges na Idade Média, por Luc Révillon. Vasco – Ombres et Lumières sur Venise, Le Lombard, Bruxelas, 2019.