Guia para 2020. Uns puxões de orelha de Camilo

Guia para 2020. Uns puxões de orelha de Camilo


Outros hão de preferir começar o ano com as banais e desoladoras frases de motivação, essas que como passas se engolem e não afetam o paladar nem dão trabalho ao estômago. Nós não.


O mundo pode estar velho, agastado, a sentir-se exausto, mas se lhe prometem algo novo, e fresco, algo por estrear, ainda se aperalta, põe uma expressão doce, mostra-se ingénuo, disposto a perdoar tudo. Tornou-se pródigo no que toca a esquecer. Finge-se se preciso, risca-se, vira-se a página, tentando quebrar o tempo… Só depois nos damos conta do quanto a nossa cabeça parece estremecer com todo o esquecimento, como se não lembrar fosse o seu grande cuidado, criar uma barragem, impedindo o passado de afogar essa réstia de encantamento que mantemos em relação ao futuro. Mas e se nos virássemos logo no arranque deste ano para um fantasma incandescente, um monstro de lembranças? Afinal, a memória foi já a maior herança, e não deixa de nos lembrar que a vida não corre num sentido apenas, mas nos atinge como um turbilhão.

Assim, tomando em mãos as 1000 frases de Camilo Castelo Branco, uma edição do ano que findou, com seleção de Luís Naves, escolhemos algumas. Não as mais encorajantes, nem os estribilhos que se usam para dar o grito de partida, mas algumas que nos sacudam da ressaca, frases das que sabem como bons puxões de orelha. Um guia para 2020 ou outro ano qualquer. Umas poucas achas para se criar, não um fogo de lareira, mas um farol. É um convite para a abrasadora obra que se divide em dramas mais sentimentais ou burlescos, pedras de afiar de um génio que nos diverte e entretém, nos ganha a confiança e surpreende; embebeda-nos, dá-nos sovas, diz-nos o pior e o melhor da vida, trata a morte sem pavor nem cerimónias, e uma obra que, passado bem mais de um século, mesmo nessas cristalizações que, se inicialmente nos parecem datadas, acabam por converter-nos, afeiçoar-nos a um modo de narrar muitíssimo matreiro, cheio de recados, que nos passa um braço sobre os ombros, e que se parece mais, afinal, com uma forma de companheirismo. Naquela prosa está não apenas “o verniz dos mestres”, mas encontra-se a língua portuguesa “genuína, opulentada de todos os vocábulos que uma retentiva paciente é capaz de ir colher aos vernaculismos do povo e das bibliotecas”, mas está ainda, como vincou Fialho de Almeida, “o instrumento vivo e acirrante dum espírito de artista, que por profundo e multíplice, houve mister, como os orgãos das catedrais, de exprimir por tubos de cobre a potência orquestral da sua voz”.

Por tudo isso, por outras tantas coisas mais, e por aquilo de que Camilo chegou a desculpar-se ao leitor do seu tempo – “o estilo esfalfado com que venho a depravar-lhe o paladar, afeito às apimentadas iguarias do romance” –, vale a pena hoje recuperar esta presença animadora, mesmo (ou até mais) quando nos diz coisas terríveis. Uma prosa para desenjoar, por ser dura, às vezes molesta, mas que teimou no seu romantismo, na sua sagaz tradição em que o erudito e o popular trocam fogo e se refletem como o céu e o inferno. “Eu canto o que escrevo”, gabava-se ele, “e, se a toada me destoa no tímpano, desmancho a oração em partes, ajusto-a de novo, calafeto-as de artigos, e pronomes, e conjunções, o mais afrancesadamente que posso, e sai-me uma coisa um pouco ininteligível, mas harmoniosa como um clarinete de romeiro em S. Torcato de Guimarães”.

“Há uma espécie de insensibilidade, que, a meu juízo, é o existir intermédio da demência e da morte. A noite, que se faz na alma, não tem orvalho de lágrimas. Sente-se o peso do coração, é bronze que está dentro a estalar as fibras sobre que pesa; mas palpitações não dá nenhuma", O Retrato de Ricardina

“Que grandes coisas devem ter-se passado nesse instante de vinte anos, enquanto esperávamos outras que nunca vieram! A cismar sempre com o futuro não o víamos passar. Afinal, parou; e deixou-se conhecer porque marchava pesado, tardio e triste: era a velhice. Chegou de repente, escureceu-se-nos tudo como se as alegrias nos fulgissem do seio de um relâmpago. Esta treva foi instantânea e gastou vinte anos a condensar-se. Que são vinte anos?", Novelas do Minho

“Muita gente cuida que as grandes desgraças procedem de profundas causas, e não atentam que basta um sopro de ódio para acender infernos", O Sangue

“Leio com dificuldade, porque os olhos não me querem deixar ver os poucos metros de viagem que me separam da última estação", Carta a Cândido de Figueiredo

“Não pense em jazigos! Coma e beba; a vida é um pagode, uma asneira alegre que se vai numa gargalhada. Quem cá ficar que nos enterre onde quiser. Que diabo! ", Eusébio Macário

“Salta-me de repente a ideia explicativa da míngua de escritores neste país de moscas. Não há cabeça de ferro que vingue resguardar delas os camarins do pensamento", Cavar em Ruínas

 “Estes grandes fenómenos do afeto explicam-se anatomicamente. Todos os estéticos hão de vir a isto, quando se entranharem da certeza de que o coração tem excrescências, efeitos naturais de que depende tudo o que os psicólogos enredam e escurentam com o seu vasconço transcendental", O Santo da Montanha

“O desgraçado, quando recebe de cima um ânimo sobrenatural, a convicção do irremediável, vive para morrer", Livro Negro de Padre Dinis

“Há condições desta natureza; há assim selvagens, que se nos encampam como requintes do ideal. São monstros necessários à perfeição do Universo. Amam como os leões rugindo; e, todavia, os leões têm meiguices que fazem inveja às pombas", O Santo da Montanha

"O amor é, além de tudo que está dito, uma coisa que falta dizer: é um telescópio. A saudade dos entes mortos alcança ainda mais pelo infinito dentro", A Bruxa de Monte Córdova

 “O amor é realmente o galvanismo dos estúpidos, desses cadáveres morais, que se levantam do túmulo da inteligência, e cantam lérias num alamiré celeste!", Cenas Contemporâneas

“Vamo-nos revolvendo nesta lama. O espantar-se a gente não tarda a ser um sintoma de demência. “O homem dos nossos dias crê na vida futura. Porém, como, com que sol, com que forma, em que teatro? Eis aqui toda a questão", Um Livro