Chile. Legado da ditadura, pode-se pagar caro quando se protesta

Chile. Legado da ditadura, pode-se pagar caro quando se protesta


A repressão policial no Chile não é novidade. Mas, com a onda de protestos iniciada em outubro, a violência massificou-se e tornou-se mais intensa.


Tortura, homicídios, manifestantes cegos, detenções ilegais, abuso sexual, violações, tratamento cruel. Foi este o preço que muitos chilenos tiveram que pagar quando decidiram sair para as ruas, desde outubro, para protestar contra o Governo e a desigualdade e exclusão social que afeta o país. A polícia chilena – comummente conhecida como carabineros – está no epicentro da maior repressão desde que o Chile saiu da ditadura, em 1990.

Sebastián Velasquez, advogado da associação Londres 38 – que recolhe denúncias de violência policial no Chile desde o início dos protestos –, acusa a polícia de empreender uma nova tática, numa altura em que existe uma maior acalmia no país: deixar estrategicamente que alguns manifestantes saqueiem estabelecimentos comerciais, ou que cometam outros atos de vandalismo, para os deterem horas depois nos seus lares. “A isso seguem-se detenções ilegais por parte dos carabineros, em que os registos oficiais de detidos são de acesso limitado ou difícil acesso, até para estudantes de advocacia”, declara ao i.

“Os protestos e atos de violência ocorreram de forma maciça em muitos pontos do país, pelo que as polícias viram-se sobrecarregadas. Para enfrentá-los, utilizaram os mesmos métodos [que a polícia utilizava antes do início dos protestos], mas aumentados na sua intensidade”, sublinha ao i Tomás Ramírez, professor de Direito na Universidade do Chile.

O Instituto Nacional de Direitos Humanos, uma agência autónoma estatal, documentou quase 400 casos de tortura e tratamento abusivo por parte das autoridades. Mais de 800 casos envolvem o uso excessivo da força por parte dos carabineros, e existem ainda outros 194 casos de violência sexual, incluindo, pelo menos, quatro violações.

“Há acusações muito reais relativas a abuso sexual. A prática de abuso sexual é contínua, anterior aos recentes protestos”, conta Velasquez, dizendo que, com as manifestações no país, as agressões sexuais cometidas pelos carabineros se massificaram. “Há inclusive denúncias em que os detidos são postos em posições sexualmente suscetíveis. E isto é uma prática realizada tanto por agentes carabineros masculinos como femininos”.

Foi nesta realidade que se popularizou um hino contra as violações, o cântico “O Violador no Teu Caminho”, escrito pelo grupo femininista de teatro Lastesis, sediado em Valparaíso. Um pouco por todo o globo – em França, Colômbia, Espanha, México e Reino Unido – cantou-se “o Estado opressor é um macho violador”.

 

Dar a visão “para que o Chile desperte”

Pelo menos 26 pessoas morreram desde que a onda de indignação chegou ao Chile. Segundo o INDH, os carabineros detiveram cerca de 15 mil pessoas até hoje. E muitos manifestantes ficaram, pelo menos, parcialmente sem visão: 347 pessoas apresentaram ferimentos oculares até 23 de dezembro, de acordo com o INDH; e muitas outras ficaram completamente cegas. Além das convencionais balas de borracha, a polícia utilizou balas de chumbo.

Gustavo Gática, jovem 21 anos, estudante de psicologia na Universidade de Humanismo Cristão, tirava fotografias numa manifestação, mal sabendo que ficaria sem visão para o resto da vida nesse dia, tendo sido baleado nos olhos pelos carabineros. Mal pôde, dirigiu-se à clínica de Santa Maria, em Santiago, que fez todos os esforços para tratar-lhe os olhos, sem sucesso. “Dei a minha visão para que o Chile desperte”, afiançou Gática, quando estava hospitalizado.

O seu caso tornou-se um símbolo da luta contra a violência policial no Chile e certos órgãos de comunicação, professores e médicos da clínica coordenaram-se para realizar um protesto de solidariedade com a situação de Gustavo Gática. “Como consequência, a clínica foi alvo de gás lacrimogéneo, uma repressão-reação que não respeitou qualquer tipo de critério devido a um estabelecimento de saúde”, conta Velasquez.

As instruções da polícia chilena sobre como e quando disparar em situações de protesto são claras. “Os protocolos dos carabineros dão conta que as ditas armas não devem ser disparadas acima da parte superior do corpo; porém, na grande maioria das vezes, disparam para a altura da cara”, informa Ramírez: “Considero que numa instituição hierarquizada não é possível sustentar que se trata de erros individuais, mas uma forma de atuar padronizada”.

 

Carabineros “aliados a grupos de narcotráfico”

Os carabineros são responsáveis por muitas violações de direitos humanos no Chile, durante a ditadura do General Augusto Pinochet, quando três mil pessoas foram assassinadas – ou consideradas “desaparecidas” – e outras 38 mil alvo de tortura. “Nunca pensámos que teríamos que voltar ao Chile, sob estas circunstâncias, para registar violações maciças de direitos humanos”, afirmou José Miguel Vivanco, diretor da Human Rights Watch para as Américas, quando a organização não governamental apresentou o relatório sobre o Chile, no final de novembro, que apelou a uma reforma das forças de segurança.

Sebastián Piñera, Presidente do Chile, reconheceu os abusos da polícia em meados de novembro, apesar de ter sido o próprio a impor o estado de emergência – entretanto levantado. Piñera comprometeu-se a assegurar que iria investigar as violações de direitos humanos e, se necessário, punir os autores dos crimes. Na opinião de Ramírez, a violência policial é parcialmente um legado da ditadura de Pinochet. Contudo, aponta também o dedo à classe política chilena pós-ditadura. “O mais relevante é que o poder civil permitiu, durante os últimos 30 anos, que [os carabineros] atuem desta maneira, tanto em Governos de centro-esquerda como da direita”, acusa.

O chefe de Estado chileno escreveu num artigo de opinião no New York Times, no dia 18 de dezembro, que não podia tolerar qualquer forma de violência ou crime, nem qualquer abuso de direitos humanos: “Temos que parar toda a violência para recuperar a paz social”. O Governo acusa os manifestantes que têm praticado atos de vandalismo de serem anarquistas e, nalguns casos, de integrarem grupos criminosos de narcotráfico. Argumenta também que existe “mão estrangeira” na contestação. Confrontado com essas acusações, Velasquez é perentório na resposta. “Não, de todo. Em termos práticos, são os carabineros que estão aliados a grupos de narcotráfico”, aponta. “O Governo necessita a todo custo de criar uma imagem de inimigo interno”.