A reforma eleitoral e o erro catastrófico do CDS


Um sistema partidário organizado como uma corte de candidatos alinhados em fila indiana atrás do chefe torna os partidos mais vulneráveis e faz voar os mandatos atrás de um ventinho desfavorável.


Há uma semana, terminou o processo parlamentar da Petição n.º 589/XIII/4.ª, que preconiza a reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República e intitulámos de “Legislar o poder de os cidadãos escolherem e elegerem os seus deputados”. A petição, acessível na internet, foi encerrada com 7.970 subscritores, após um processo de pouco mais de um ano – foi lançada em Outubro de 2018 pela APDQ e pela SEDES: a primeira, uma associação cívica recente; a segunda, uma das mais reputadas na nossa sociedade civil, a celebrar o cinquentenário. A petição estava pronta para o plenário já em Abril passado, ficando a demora a dever-se ao período eleitoral em que, entretanto, entrámos.

Durante este percurso, abstive-me de comentar as posições do partido a que pertenço: o CDS-PP. O CDS não era naturalmente nem mais, nem menos que qualquer outro – em diferentes fases do processo, lidámos com os partidos parlamentares de igual forma, sem discriminações positivas, nem negativas.

Mas, agora que o processo se concluiu, estou à vontade para comentar a posição do CDS, lamentando-a: considero um erro catastrófico a obstinada oposição dos dirigentes do CDS-PP à reforma eleitoral proposta.

Não é uma oposição nova. O CDS votou contra a revisão constitucional de 1997, ao lado do PCP e do PEV. O sistema eleitoral era uma das matérias que provocava desconfianças ao CDS, por razões semelhantes ao PCP. A revisão contou apenas com os votos favoráveis de PS e PSD e a imagem desta dupla amplificou os receios contra o funil do “centrão”, que quereria esmagar os mais pequenos, à esquerda e à direita. Foi este medo que ecoou no debate parlamentar de uma nova lei eleitoral, em Abril de 1998, tentativa de reforma chumbada por vetos cruzados entre PSD e PS. Porém, a razão real deste chumbo não foi o novo sistema misto proposto, mas a insistência do PSD em reduzir o número de deputados de 230 para perto de 180, como a Constituição permitia. Foi esta intenção que intoxicou o debate, consolidando a desconfiança de CDS e PCP. Na altura, para travar esse corte de 50 deputados, valeu o desacordo do PS; mas a reforma ficou sacrificada, já que o PSD proclamou que, sem isso, a reprovaria.

O clima poluído de 1997/98 nunca mais desapareceu. As ideias feitas que se ouviram na passada sexta-feira das bancadas de PCP, BE e CDS são as mesmas dos debates de 1998: a reforma visaria a bipolarização e favoreceria os maiores partidos. Em 1998, face à pressão do PSD, esses receios podiam entender-se. Agora, não. Os partidos tiveram, aliás, mais do que tempo para estudarem a realidade doutros países em que vigora o sistema misto de representação proporcional personalizada (para que aponta o artigo 149.º da Constituição) e verificarem que os receios não se justificam: o sistema é tanto ou mais proporcional do que o nosso actual. Todos esses partidos reaccionários contra a reforma têm parceiros na Alemanha, onde esse sistema vigora desde 1949, com proveito e sucesso, que poderiam explicar-lhes a realidade: o PCP no Die Linke, o BE no Die Linke e nos Grünen, o CDS na CDU e CSU. Só por preconceito e por falta de estudo e de espírito aberto se explica a paralisia hiperconservadora, para mais quando o descrédito da representação parlamentar não cessa de agravar-se de eleição em eleição, impondo a reforma como imperativo urgente. Em 1997/98, quando despertámos para esta alternativa de sistema eleitoral, já a evolução na Alemanha se encarregara de desmentir outra fantasia superficial que se cristalizou no discurso dos críticos resistentes: o sistema misto, de círculos uninominais e plurinominais articulados, seria bipolarizador, tudo concentrando em dois partidos. Ora, em 1997/98, já a Alemanha evoluíra de três para cinco partidos parlamentares (aos tradicionais CDU/CSU, SPD e FDP, juntaram-se os Grünen e o Die Linke, que sucedeu ao PDS); e, hoje, é um sistema de seis partidos principais (tendo acrescido o AfD).

A direcção do CDS não deveria opor-se, por sistema, às reformas fundamentais, como é o caso das reformas eleitorais. Com Paulo Portas, o único “avanço” foi, no debate televisivo com Passos Coelho, em 2011, a ideia de reduzir o Parlamento a metade (115 deputados), o que, além de problemático e revelador, seria erro gravíssimo. Por um lado, o CDS não deve opor-se à concretização de orientações estruturantes do Estado e da democracia que estão congeladas. Portugal é dos poucos países que conheço que enfrenta, anos a fio, a situação caricata de a Constituição não ser concretizada em áreas fundamentais de funcionamento do Estado: é o caso da regionalização, que, após o chumbo do referendo de 1998, deveria ter sido revista e ajustada; é o caso de, entretanto, termos desmantelado também os distritos, contra o disposto no artigo 291.º, deixando vastas parcelas do Continente em completo abandono administrativo pelo Estado; e é o caso da reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República.

O CDS deve, ao contrário, liderar estas reformas, assim como o ímpeto e a determinação de as propor e promover. Deve obviamente velar por que não sejam reformas batoteiras ou despesistas, servindo a todos com justiça e assegurando um Estado contido, não esbanjador. Mas, garantido o essencial – igualdade das candidaturas, representação efectiva da cidadania, serviço público, moderação nos empregos políticos –, o CDS dever lutar pelas reformas fundamentais para a qualidade e bom serviço do Estado de direito democrático. Nem deve estar excessiva ou exclusivamente preocupado consigo próprio, antes com a cidadania a que todos pertencemos. O que for bom para a cidadania é bom para o CDS – assim é que as direcções do CDS devem pensar. A cidadania saberá sempre premiar os partidos onde identifica o desejo sincero e o espírito recto de a servir.

Além disso, o CDS poderia ser um dos beneficiários do sistema de representação proporcional personalizada. Este sistema, articulando círculos uninominais e plurinominais e dando mais poder às bases e ao peso da opinião cidadã na escolha dos candidatos, forçaria a abandonar o dirigismo absoluto em que o CDS tem funcionado e se foi asfixiando a pouco e pouco. A direcção do CDS-PP dizia – mal – que o novo sistema levaria ao desaparecimento do CDS. Não foi preciso: no sistema actual, de que tanto gostam, o CDS foi esmagado para 4,2% e cinco deputados.

Pensemos um bocadinho: se o CDS, no quadro de um sistema misto, tivesse de apresentar 105 candidatos de referência e com valor, em 105 círculos uninominais, onde é que tombaria para 4%? Um sistema partidário organizado como uma corte de candidatos alinhados em fila indiana atrás do chefe torna os partidos mais vulneráveis e faz voar os mandatos atrás de um ventinho desfavorável. É provável que, no modo em que se fechou, o CDS não visse logo esses 105 candidatos individuais com valor – teria de ir à sua procura e, com bom critério, sem dúvida os encontraria. Isto é que o salvaria: 105 pilares de referência em todo o território e, ao mesmo tempo, uma influência regeneradora da cidadania, quer para um funcionamento partidário mais genuíno, respirando com a sociedade, quer na formação das listas de candidatura. O CDS seria um partido mais sólido, consistente e representativo, beneficiando com a reforma eleitoral. É esta que daria sentido à sua experiência e poderia salvar a sua história e o seu presente.

Os partidos só vivem bem com a cidadania. E também só assim valem a pena. É a democracia de qualidade.

 

Advogado

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990