A Natividade de Caravaggio.  Um mistério com 50 anos

A Natividade de Caravaggio. Um mistério com 50 anos


A Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio, desapareceu há 50 anos. O crime é considerado um dos maiores roubos de obras de arte e não faltam teorias da conspiração – uma das mais mirabolantes reza que o quadro até serviu de tapete ao chefe da máfia siciliana Totò Riina.


O tema não podia ser mais propício em relação à época, e se hoje em dia já não se pintam Natividades nem com a frequência nem com a devoção de antigamente, certo é que a cena do nascimento de Jesus, rodeado de Maria e José – que, consoante as versões, poderia ou não contar com os restantes e tradicionais elementos do presépio, tratando também muitas vezes a cena da adoração dos reis magos – continua no imaginário de todos. Representada logo nos primeiros tempos da Cristandade, a temática foi depois amplamente pintada e recriada pelos grandes mestres logo partir da Idade Média, mas provavelmente com maior incidência a partir do Renascimento. Seja em retábulos, frescos ou telas, a profusão de natividades na história da arte é imensa: por volta de 1304, Giotto pintou-a numa parede da Capela degli Scrovegni, em Pádua; Piero della Francesca criou a sua versão algures entre 1470-1475; Botticelli representou a Natividade Mística logo no princípio de 1500; e o francês Georges de La Tour deixou-nos a sua visão do tema num óleo de 1648 – só para dar alguns exemplos.

Há uma destas versões, porém, que ocupa um lugar especial – e não pelos melhores motivos. Falamos da Natividade com S. Francisco e São Lourenço, uma obra de Caravaggio (1571-1610), nome maior do Barroco, roubada há 50 anos do Oratório de São Lourenço, numa capela em Palermo, Itália. O quadro de grandes dimensões, pintado em 1609 pelo mestre do chiaroscuro, encimava o dito oratório quando desapareceu sem deixar rasto no dia 17 de outubro de 1969. A tela foi milimetricamente recortada e será fácil imaginar o queixo caído de quem, naquela dia de outubro, encontrou a gigantesca moldura vazia.

Teses há muitas Desde então, a máfia siciliana tem sido apontada como a responsável pelo furto, mas nada foi provado e as autoridades nunca perderam a esperança de encontrar a obra. As teorias, algumas com detalhes quase mirabolantes, não tardaram a aparecer: chegou a escrever-se que a obra foi retalhada e vendida aos pedaços; que o roubo foi encomendado por antiquários e enviada para a Suíça; que foi comida por ratos numa das sedes da máfia; que os criminosos, para evitar serem descobertos, se desfizeram dela dando os pedaços de tela a comer aos porcos; que serviu de tapete ao conhecido ‘capo dei capi’ Totò Riina; ou ainda que continua exposta numa das salas de poder da Casanostra, sendo portanto um símbolo da supremacia da máfia italiana. Há ainda uma teoria que aponta que o Estado italiano até já recuperou a pintura, visto que os mafiosos a venderam por uma pechincha ao Governo em troca de melhores condições dentro da prisão.

As suspeitas que recaem sobre a máfia já vêm de longe. Em 2001, o padre Rocco Benedetto, de Palermo, contou a sua versão da história a Massimo D’Anolfi, na altura um jovem cineasta que se encontrava a fazer um documentário sobre obras de arte roubadas. O testemunho ficou gravado em vídeo e foi, no ano passado, divulgado pelo Guardian – ao jornal, o cineasta esclareceu que não teve, na altura, noção da importância das declarações do padre Benedetto, até porque o próprio padre chegou a ser acusado de estar envolvido no crime por outro membro da Igreja, que depois se retratou. No vídeo, o pároco, que morreu em 2003, revela que a tela estava na casa de um conhecido membro da máfia, Gaetano Badalamenti, o mandante do furto.

Acontece que, de acordo com o rumo das investigações, as suspeitas elencadas pelo pároco se coadunam com as descobertas mais recentes. Gaeatano Grato, outro membro da máfia que diz ter participado no roubo, confirmou também que o quadro estaria com Badalamenti, confirmou no ano passado a polícia italiana. A partir daqui, a tese do delator não é animadora: Grado revelou que, nos anos 70, a obra avaliada, na altura, em 20 milhões de dólares tinha sido levado para a exterior de Itália, “provavelmente para a Suíça, depois do pagamento de uma avultada quantia de francos”, cita o El País. O mafioso precisou ainda que o quadro foi depois cortado em seis ou oito partes, visto que era mais fácil vender os pedaços da obra-prima no mercado negro.

Há 10 anos, contudo, outro mafioso ligado à Casanostra, Gaspare Spatuzza, tinha apresentado uma tese contrária. Na altura, o homem disse às autoridades italianas que, depois do roubo, o quadro foi escondido num barracão, onde acabou por ser comido por ratos e porcos. Depois, os membros da organização criminosa terão queimado os despojos remanescentes.

Contudo, a polícia, em maio do ano passado, apenas confirmou a versão do padre e de Grado – a de que o quadro terá mesmo, a dada altura, estado na posse de Badalamenti, que morreu em 2004. Sobre a hipotética chegada da obra – e em que condições – à Suíça não foram tecidos comentários. O testemunho gravado dado pelo padre foi até exibido a 15 de outubro deste ano, no Teatro Biondo, em Palermo.

Um filme da vida real Este ano, em que se assinalou meio século sobre o desaparecimento da obra, o tema voltou às parangonas dos jornais em Itália também a propósito de um filme de Roberto Andó que parte do já mítico roubo. Em Una Storia Senza Nome (2018) o cineasta, nascido em Palermo, recupera a história deste que é um dos roubos mais famosos em todo o mundo, quer para falar dos limites da realidade e da ficção – evocando a (pouca) validade das teorias da conspiração acima descritas, muitas vezes inventadas pelos membros da máfia e usadas como moeda de troca – quer para explicar como, nos anos 60, era facílimo roubar uma igreja. Ainda para mais uma igreja numa localidade, então, totalmente dominada pelo crime organizado.

Muito provavelmente, a Natividade nunca voltará a casa e as hipótese de o quadro ainda se encontrar intacto parecem escassas. Mas a aproximação dos 50 anos sobre o seu desaparecimento parece ter trazido uma nova esperança tanto que, em 2018, o Vaticano organizou uma conferência onde foi discutido o paradeiro da obra.

Apesar do imbróglio decorrente do roubo e de todos os mitos criados em seu redor, o FBI mantém ainda hoje a pintura no top 10 da lista de obras desaparecidas. Entretanto, quem for a Palermo conhecer o Oratório de São Lourenço e se deparar com a Natividade com S. Francisco e São Lourenço, em que o mestre do barroco representou o nascimento do menino Jesus, visitado pelos dois santos que se juntam ao nome da obra, não pense que se trata de um regresso miraculoso: é ‘apenas’ uma réplica digitalizada da tela, ali colocada em 2015, e que dá uma ideia do esplendor da tela pintada por Caravaggio há mais de quatrocentos anos.