Ao contrário do que se passa com os indivíduos e as pessoas colectivas na ordem jurídica interna, os Estados, no plano internacional, têm de consentir previamente na submissão a uma determinada jurisdição. Concretizando esta homenagem ao princípio da soberania, a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) é voluntária – depende da expressa vontade dos Estados. A manifestação de vontade pode ser vertida numa declaração genérica de aceitação da jurisdição ou pode resultar da vinculação a uma concreta convenção internacional que determine a jurisdição do TIJ para a solução de litígios resultantes da sua aplicação.
Tradicionalmente, a tradição soberanista apontava para a bilateralização dos litígios entre Estados. Conflitos relativos a fronteiras, populações, recursos naturais, interpretação de tratados, conflitos armados e afins opunham um Estado a outro. Mais recentemente, a geometria dos litígios internacionais tornou-se mais complexa e um Estado pode surgir a patrocinar um interesse difuso, comum a toda a comunidade internacional ou a uma parte significativa da mesma, ou, no limite, patrocinando um interesse de terceiros que pode corresponder a uma entidade não estatal.
A intervenção processual para defesa de interesses que ultrapassam a esfera nacional pode resultar da natureza voluntária da jurisdição do TIJ, por não ser possível agir processualmente contra um Estado que não aceita a jurisdição deste tribunal. A título de exemplo desta circunstância recorde-se o caso Portugal contra Austrália no TIJ, defendendo os interesses de Timor-Leste, tendo como causa de pedir o tratado de delimitação de fronteiras marítimas e de exploração de recursos naturais celebrado entre a Austrália e a Indonésia, não reconhecendo esta última a jurisdição do TIJ.
A 11 de Novembro deste ano, a Gâmbia intentou no TIJ uma acção contra Mianmar (conhecido como Birmânia até 1989, quando a junta militar optou pelo novo nome, partilhando ambos os qualificativos o campo etimológico do grupo étnico maioritário) pela prática de genocídio cometido contra a população rohingya. Os dois Estados reconhecem a competência do TIJ e são partes na Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio, de 1948, cujo artigo ix confere jurisdição ao TIJ.
A Gâmbia situa-se na África ocidental e Mianmar no sueste asiático, não havendo fronteiras comuns entre os dois Estados. Também não há movimentos populacionais relevantes entre os respectivos territórios. Par contre, a esmagadora maioria da população da Gâmbia declara-se muçulmana, seguindo o rito sunita. Os rohingyas são também muçulmanos, concentram-se no norte de Mianmar, próximo da fronteira com um Estado maioritariamente habitado por muçulmanos, o Bangladesh. A minoria rohingya ambicionou um Estado independente, ambição patrocinada pelo Reino Unido durante a ii Guerra Mundial como forma de combater a expansão japonesa na Birmânia, que contava com o apoio de uma população maioritariamente budista.
No pedido dirigido ao TIJ, a Gâmbia incluiu medidas provisórias (o equivalente a medidas cautelares no direito português) com o propósito de fazer cessar as práticas que classificou como integrando o crime de genocídio. Os procedimentos cautelares, para serem úteis, obrigam os tribunais a ouvir as partes com urgência e a pronunciarem-se com rapidez.
Nas audiências perante o TIJ, os representantes de Mianmar defenderam a falta de legitimidade processual da Gâmbia – Estado não lesado –, considerando que a acção seria financiada e intentada em nome da Organização para a Cooperação Islâmica. To be continued.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990