Um forte cheiro a gás no Mediterrâneo oriental


Tão bem sentada que a Europa estava, aguardando o regresso de Trump aos EUA,a COP de Madrid, o Brexit, a chegada das festas. Mas não.


O país televisivo anda perdido entre a Greta e o futebol. Jornalismo de tripé, horas a fio, num caso, jornalismo de replay de jogadas e de exegese das mesmas, dia e noite, sem fim à vista. O que não existe na televisão não existe no mundo. No entanto, o mundo, o verdadeiro, o que extravasa o ecrã dos diversos instrumentos da humana vidência, resiste a esta fatalidade, por vezes bem mais perto da existência lusa e com consequências não anunciadas nos rodapés dos telejornais. Muito antes da prometida descarbonização da economia, ainda há-de morrer muita gente por mor dos hidrocarbonetos. Não só por via da poluição da atmosfera ou dos rios ou da subida do nível dos oceanos, mas por via de uma doença antiga mas mortífera. Como se diz no continente a sul, “moreu di bala”.

Na semana passada, o Presidente da Turquia visitou em Trípoli o primeiro-ministro líbio, Fayez Al Serraj. Durante a visita assinaram dois memorandos de entendimento (MoU). Um de natureza militar reforçando a ajuda turca ao Governo de Trípoli, reconhecido como Governo legítimo (de jure) pela ONU, mas cercado pelas tropas de Khalifa Haftar, o líder do Governo que, de facto, controla a maior parte do território líbio (e os campos petrolíferos, refinarias e terminais portuários).

O segundo MoU partilha o Mediterrâneo oriental, dividindo-o entre a Turquia e a Líbia, fixando uma fronteira comum para as respectivas zonas económicas exclusivas e plataformas continentais. A curvatura da Terra explica a possibilidade de fronteira comum entre dois Estados que, vistos no planisfério, parecem mais “diagonalmente” afastados do que na realidade estão. No entanto, entre os segmentos continentais destes dois Estados encontram-se várias ilhas gregas (desde logo, Creta) e a ilha de Chipre (por sinal, invadida em 1974 pela Turquia com a criação da República do Norte do Chipre, reconhecida apenas pela Turquia, tendo o sul aderido à UE em 2004). De acordo com a Convenção de Montego Bay sobre Direito do Mar (que a Turquia não ratificou), as ilhas contam para a delimitação de fronteiras marítimas (tema caro a Portugal a propósito das ilhas Selvagens, num contexto em que também não estão acordadas fronteiras marítimas).

A delimitação de fronteiras marítimas no mar Egeu é um foco permanente de conflitos entre a Grécia e a Turquia, com incidentes quase diários e acusações mútuas de violação do território nacional por parte de navios e aviões das respectivas forças armadas.

As reacções mais violentas contra o MoU vieram do Egipto, que considera o Governo de Trípoli ilegítimo e o MoU ilegal, por não ter sido ratificado por um Parlamento representativo do povo líbio (e sim, o Presidente Sisi apoia o Governo de Haftar, combate o pan-islamismo de Ancara e tem tendência para obnubilar, manu militari, qualquer sobra da Irmandade Muçulmana).

A divisão do Mediterrâneo oriental entre Ancara e Trípoli visa partilhar os enormes depósitos de gás natural (e, em menor quantidade, de petróleo) combatendo o domínio do Eastern Mediterranean Gas Forum, que senta à mesma mesa Grécia, Egipto, Israel, Chipre, Palestina, Jordânia e Itália.

Todos sabemos que um forte cheiro a gás é indiciador de possíveis explosões. Uma nova frente de conflito no Mediterrâneo oriental envolvendo dois aliados na Nato (Turquia e Grécia) e dois membros da UE (Grécia e Chipre) obrigará EUA e UE a mostrarem uma capacidade diplomática de prevenção de crises que tem estado ausente nos tempos recentes.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990