Habitação. Vigília por um direito de que dependem muitos outros

Habitação. Vigília por um direito de que dependem muitos outros


Portugal recebeu a visita do secretário-geral da Amnistia Internacional, Kumi Naidoo, que visitou o Bairro 6 de Maio. “É chocante ver esta realidade, estas condições”, lamentou, perante dezenas de ativistas e moradores que deixaram o seu testemunho.


“De tanto lutar, as pessoas cansam-se”, desabafou Ricardina Cuthbert, presidente da Associação do Bairro da Torre, em Loures. Pegava no microfone numa vigília pelo direito à habitação à porta da Câmara Municipal da Amadora, esta quarta-feira à noite. Estava acompanhada por moradores e ex-moradores do Bairro 6 de Maio, de ativistas da Amnistia Internacional e da associação Habita. O que os juntou foi a certeza de que a habitação é um direito humano básico que está a ser vedado a muitos.

“Muitos direitos dependem do direito de ter uma casa”, resumiu o secretário-geral da Amnistia Internacional, Kumi Naidoo, perante os presentes. A sua visita a Portugal teve de ser encurtada – demitiu-se no dia seguinte, por motivos de saúde –, mas não sem antes visitar o Bairro 6 de Maio, onde há anos que habitações precárias são a regra e os despejos uma ameaça permanente, muitas vezes sem realojamento à vista. “É chocante ver esta realidade, estas condições, e a abordagem tomada quanto à vida das pessoas”, lamentou Naidoo.

Nos testemunhos que se seguiram, a constante era a indignação. Alguns expressavam-na furiosos, outros com tristeza, como Cátia Silva, moradora no 6 de Maio e dirigente na Habita – trouxe consigo a filha, Nicole, de seis anos. Só foi realojada a semana passada, mas não esquece o terror que a filha viveu quando começaram os despejos em larga escala, em 2015. “Havia três ou quatro por semana. Mal ela ouvia a máquina gritava, aflita: ‘Mãe, mãe, é a nossa casa, vão demolir a nossa casa’”, conta. “Eu também ficava com medo, na incerteza, mas não lhe podia mostrar a ela”. A filha queria saber para onde iam viver, mas Cátia não lhe sabia dizer.

Agora que finalmente encontrou uma solução, Nicole “está supercontente com a casa nova”. Mas Cátia não desiste de exigir justiça para os seus antigos vizinhos, como Braima Gano, de 63 anos, que veio com ela à vigília. Braima chegou a Portugal há três décadas, vindo da Guiné-Bissau, e apesar de depender de hemodiálise já foi despejado duas vezes. Agora vive numa cave que arrenda por 150 euros por mês. Sobra-lhe pouco da sua pensão de invalidez – de vez em quando recebe alguma ajuda e alimentos de conhecidos.

Braima é uma das pessoas sem qualquer garantia depois dos despejos. Muitos outros “vivem em garagens, casas de familiares, ruínas, na rua”, afirmou Maria João Costa, da Habita. Se não são tudo más notícias – desde o ano passado, vários moradores foram realojados –, a preferência foi pelas pessoas que ainda têm uma casa no bairro, notou a dirigente da Habita. “Quem já perdeu as suas casas foi ignorado. Parece que o único interesse é libertar o terreno”, criticou.

Para Maria João, o pouco que se conseguiu foi graças à luta dos moradores e associações. “Só nos estão a ouvir porque são obrigados”, concordou, com o microfone na mão, Paulo Fontes, da Amnistia Internacional Portugal. Olhava para a Câmara da Amadora, que até à hora de fecho desta edição não respondeu ao pedido de esclarecimento do i.

“Não dá para pagar uma renda” Enquanto se ouvem testemunhos, ali ao lado, Nicole brinca com Raissa, de dez anos. A sua mãe, Paula Aspirante, está ali juntamente com a tia para lutar pelo direito da filha a ter um quarto. “O que eu ganho não dá para pagar uma renda”, lamenta Paula, que trabalha numa escola na Damaia, como assistente de cozinha. De momento vive com quatro menores numa casa com dois quartos da Câmara da Amadora, “com ratos, sem condições nenhumas, cheia de humidade”. Se não fosse o receio de até essa casa perder a qualquer momento, Paula “descia aí no bairro, arranjava alguém para tratarmos daquilo”. Entretanto, continua à espera de uma solução, em vão. “Escrevi tantas cartas que nem as sei contar”.

A demora também angustia Andresa Monteiro, que espera uma resposta do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) há anos. “Tenho as provas aqui, os documentos nunca os vou deitar fora. Renovo-os todos os anos”, garantiu, revoltada. Os despejos no 6 de Maio fizeram-na sair do bairro, e Andresa acabou a alugar uma casa por 350 euros para as suas duas filhas, de 16 e 18 anos – ganha cerca de 400 a fazer limpezas. Muitas vezes, o trabalho impede-a de ir às reuniões de pais na escola das filhas, “mas elas vão ser o que quiserem, vão estudar”, prometeu.

Mais perto do fim da vigília marcou presença a deputada do Livre, Joacine Katar Moreira, recebida emotivamente por vários dos presentes, como Andresa. “Queremos dar hipótese a estas senhoras de terem rendas adequadas”, assegurou, defendendo medidas como uma maior regulação do arrendamento. Joacine relembrou ao i a sua proximidade ao tema da habitação. O seu primeiro contacto com ele foi quando morava em Alverca, perto do Bairro de Arcena, onde viviam muitos imigrantes cabo-verdianos e guineenses. “Apesar de não viver ali, o meu pai visitava o bairro, tinha amigos lá”, explica Joacine. “Era assustadora a falta de condições básicas de saneamento, e no inverno era impossível”, recorda.