Nos bastidores da nostalgia que nos assalta desde os anos 80

Nos bastidores da nostalgia que nos assalta desde os anos 80


Uma série documental da Netflix faz uma viagem no tempo e desenterra as aventuras nos bastidores de quatro clássicos dos anos 80 que marcaram gerações: Dirty Dancing, Home Alone, Ghostbusters e Die Hard.


Alguém já se deu conta de que tudo o que é épico pertence ao passado. E a nostalgia, com a sua traiçoeira persuasão, funciona como um génio afectivo, capaz de flanquear-nos quando menos esperamos; um arqueiro cuja flecha assobia longamente, vinda de longe. E muito antes de nos atingir, deixa-nos como presas encadeadas. De algum ponto do nosso passado, surge esse golpe que nos derruba, nos deixa estendidos, lendo no movimento dos céus estórias que recordamos como se tivessem acontecido a outro. Admiramo-nos do que nos aconteceu e, de algum modo, fez de nós quem somos. A nostalgia é um suave melodia triunfal que toca em honra da nossa passagem pela terra, um “hábito saudável e vagamente implorante”, sobretudo numa época que cheira nos próprios dedos algo que lhe diz que o fim está próximo.

Se hoje o sofá é para muitos de nós uma espécie de limbo, um serviço como a Netflix pode ser tão frustrante como, noutras alturas, servir como um portal, para nos resgatar desses momentos de negra melancolia, em que “os apetrechos da vida activa se acham inutilizados ao nosso redor, como objectos de um vão ruminar”. Assim, e depois do sucesso da série documental “The Toys That Made Us” (“Os Brinquedos da Nossa Infância”), o criador desta produção original para a Netflix, Brian Volk-Weiss, serviu-se do mesmo formato, do registo humorado e leve, com um pintassilgo a baloiçar na corda do alaúde da nostalgia para lançar, logo após o feriado de Acção de Graças, uma crónica da produção de quatro filmes icónicos dos anos 80, reflectindo sobre o duradouro impacto que tiveram na cultura popular.

O quarteto que inaugura esta primeira temporada de “The Movies That Made Us” (“Os Filmes da Nossa Infância”) debruça-se sobre os seguintes clássicos: Dirty Dancing, Home Alone – este foi lançado já em 1990, mas partilha do espírito dos outros –, Ghostbusters e Die Hard. Estes pequenos documentários ficam-se por 45 minutos cada, e, por essa razão, não se tratam de operações de dissecação muito profundas, mas conseguem balançar bem entre o registo informativo, o relato das atribulações desde a concepção e produção, os desafios, imprevistos e conflitos durante as filmagens, até ao momento de redenção absoluta que é um sucesso retumbante nas bilheteiras. Embora nenhum dos episódios seja propriamente memorável, Volk-Weiss domina bem esta forma de benigno parasitismo, e tendo conseguido boas entrevistas com a equipa e elenco das quatro fitas, o aspecto mais bem conseguido da série está na capacidade de prender a curiosidade da audiência e não mais largá-la. Ainda que algum dos filmes não se tenha imposto como um eixo do imaginário da nossa infância ou adolescência, estes documentários mergulham um pouco para lá ddos mais banais rumores e das trivialidades que podemos ler no IMDB ou na Wikipédia. Não há propriamente revelações bombásticas, mas não deixa de ser surpreendente perceber como qualquer destas produções enfrentou sérios obstáculos, e a certa altura estiveram mesmo por uma unha negra.

É sempre motivo de deleite o facto de, depois de anos em que demos por nós embasbacados diante da televisão depois de termos apanhado a meio alguns destes filmes, e especialmente na altura do Natal, podermos assistir a imagens de arquivo, perceber o ambiente que reinava nos bastidores, e as cenas que foram planeadas ou ocorreram fortuitamente, acabando por se fixar na memória colectiva de todos nós. Por exemplo, no caso de “Sozinho em Casa”, quase três décadas depois, não deixa de causar alguma surpresa o facto de Joe Pesci, o actor favorito de Martin Scorcese, ter aceitado fazer o papel de um sanhoso bandideco num filme de baixo orçamento, protagonizado por um miúdo de nove anos e realizado por Chris Columbus, que até ali, além de alguns guiões bem sucedidos, apenas tinha dirigido dois flops comerciais. Como o próprio Pesci contou em algumas entrevistas, quando um guião lhe chegava às mãos, se não estivessem espalhados alguns impropérios e obscenidades, era ele mesmo que, para imaginar-se no papel, ia acrescentando esse mimos às suas falas. O problema é que, sendo este um filme de Natal para toda a família, quando chegou a altura de filmar, Pesci foi impedido de se rasgar de nervos por meio de palavrões, e foi assim que o velho bom rapaz desenvolveu aquela resmunguice de sons com o rabo a bater à tona da língua sem chegar a formar qualquer palavra obscena. Ficou a desgraçada da intenção, naquele sufoco da língua quando fica doida para se desembaraçar de constrangimentos, descoser-se em caralhadas, e foi isso o que trouxe um especial relevo a um dos mais icónicos personagens da carreira de Pesci.

Outro aspecto marcante do filme prende-se com o trabalho dos duplos. Tanto Harry, o bandido interpretado por Pesci, como Marv, o seu comparsa, interpretado por Daniel Stern, levam uma sova de todo o tamanho do miúdo que ficou sozinho em casa, e que se revela um pequeno Rambo doméstico, distribuindo armadilhas pela casa. Nas tantas cenas em que a comédia guina de forma lancinante para um espectáculo de castigos corporais que ainda hoje doem só de olhar, valeu à produção ter do seu lado uma equipa de temerários duplos, desses que não se limitam a dar tudo de si, mas que depois de um tralho monumental, ou de levarem com latas de tinta nos cornos, parecem radiantes por repetir os takes tantas vezes quantas forem necessárias. Naqueles tempos, o recurso aos efeitos especiais não era uma opção, e se o humor físico destas cenas se tornou emblemático, os duplos tornaram-se lendas, ao ponto de, hoje, na indústria, sempre que há uma cena mais arriscada, em que se exige a um destes profissionais que se estatele em nome do realismo, isso ficou conhecido como “The Home Alone”.

Estas cenas que, se fecharmos olhos, conseguimos visualizar sem grande dificuldade, devem muito do seu impacto à influência dos desenhos animados. Julio Macat, o director de fotografia, deu-se conta de que as armadilhas montadas por Kevin (Macaulay Culkin) só podiam funcionar se as elaborasse pondo-se na pele de um puto daquela idade. Assim, Macat passou horas a ver desenhos animados como Roadrunner e Bugs Bunny, inspirando-se neles para conceber os tão diversos e inventivos modos de torturar os “Bandidos Molhados”.

Qualquer destes quatro clássicos oferece uma perspectiva bem mais caótica e aventureira do que se esperaria do que foi em tempos o processo necessário para conseguir que um estúdio desse luz verde a uma produção. E se Dirty Dancing, tal como Home Alone, representam os filmes de baixo orçamento que se transformam em fenómenos de sucesso que lançam todo um género, Ghostbusters e Die Hard representam produções em que foram investidas somas bem mais sérias. Mas isso não significa que o processo, num ou noutro caso, tenha sido menos agitado ou extenuante para a equipa e elenco. O caso de “Die Hard” é um bom exemplo.

Quando as filmagens começaram o guião só tinha 35 páginas. Ninguém sabia muito bem que desfecho teria o filme. A base do argumento era um romance de Roderick Thorp, e o guião que fora inicialmente encomendado como uma sequela para “The Detective”, um thriller protagonizado por Frank Sinatra, em 1968, ficou engavetado por quase duas décadas. Coube ao guionista Jeb Stuart ter dar uma grande volta à história de forma a torná-la instigante para os executivos de Hollywood, e depois de todo o seu investimento, depois de o projecto ter recebido luz verde, Stuart foi despedido, porque o produtor Joel Silver decidiu que queria polvilhar o guião de elementos de comédia. Para esse efeito, foi buscar o guionista Steven E. de Souza, mas dada a origem da coisa, e apesar de o papel de John McClane ser muitíssimo exigente do ponto de vista físico, Silver foi obrigado a oferecê-lo primeiro a Sinatra. Naturalmente, o velho galã recusou, mas depois o papel foi oferecido a todos os grandes nomes dos filmes de acção e, um a um, todos o recusaram.  Clint Eastwood, Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Richard Gere, Burt Reynolds e James Caan… O motivo da recusa era o facto de McClane ser visto como um fracote, que ia levando no lombo ao longo de duas horas, mesmo se, no fim, acabava por triunfar sobre o sinistro bando de bandidos internacionais chefiado por Hans Gruber (Alan Rickman). Mesmo Bruce Willis, que era na altura uma estrela da televisão e estava com grandes dificuldades para transitar para o grande ecrã, só aceitou o papel que o catapultou para o estrelato mundial depois dos estúdios terem acordado em pagar-lhe 5 milhões de dólares. Willis tornou-se não só se tornou o rosto do grande anti-herói do cinema americano, ainda se ficou a rir com o mais chorudo salário até então pago em Hollywood.