Os pássaros dentro de nós estão agitados, parecem esmagar-se contra os céus de uma inquietação difusa e inescapável. Há como uma sirene ao fundo, a cujo ruído nos habituámos e a que fingimos não ligar. O som não deixa, no entanto, de arrepiar-nos. É tal o pandemónio de distracções e infindáveis truques de um ritmo diário subjugado às ordinarices do espectáculo que a situação de emergência climática e o perigo existencial que esta coloca à vida na Terra parece diluir-se entre os contornos a néon de uma época que tem um certo ar de pechisbeque. Num tempo assim, quem quer que beba o tumulto em águas outrora calmas e surja em cena com gestos aparatosos, soando o alarme, arrisca passar pelo palhaço da célebre párabola de Kierkegaard. Numa das entradas de Diapsalmata, o filósofo dinamarquês conta-nos da vez em que, tendo um incêndio deflagrado nos bastidores de uma sala de espectáculos, o palhaço que veio alertar o público não conseguiu senão animá-lo, julgando este que se tratava de uma piada. O desespero real daquele foi recebido com risadas e aplauso. Ao insistir, a aclamação foi ainda maior. Kierkegaard conclui a parábola com esta sinistra profecia: “É deste modo, segundo me parece, que o mundo vai acabar: sob o júbilo geral dessas mentes espirituosas julgando que tudo não passava de uma piada”.
Com o brutal retrato que David Wallace-Wells traça dos efeitos caóticos que o aquecimento global está a provocar no planeta, este jornalista conseguiu romper o feitiço, este nervosismo que nos dá para rir, e, assim, levou a que a audiência visse um pouco para lá da maquilhagem e da farpela que hoje a todos nos cobre de um ar ridículo quando emergimos dos bastidores de uma sala de espectáculos. Antes de ser o título do livro que, há algumas semanas chegou também às nossas livrarias, “A Terra Inabitável” teve um surpreendente impacto ao ocupar a capa da revista New York, em julho de 2017. Em poucos dias, o longo artigo tornou-se o mais lido de sempre na história daquela publicação, e, com uma prosa vigoríssima, conseguiu sobrepor-se à “arrepiante linguagem banal da climatologia”, para articulá-la de forma mais impressiva e urgente, lembrando aquela sensação opressiva e de ameaça iminente que se solta das páginas das grandes ficções distópicas. A tenacidade e eloquência da sua abordagem sacudiu o público do seu estupor. Ao mesmo tempo, introduziu uma inflexão decisiva no debate, contestando a cautela da generalidade da comunidade científica na hora de traduzir este pesadelo planetário, evitando o alarmismo para não precipitar o público numa noção fatalista em relação à catástrofe que se avizinha. Ora, como Wallace-Wells frisou numa entrevista à NPR no ano passado, já depois de ter expandido o artigo original, publicando este livro, a nossa actuação face ao pesadelo em que estamos imersos é de tal modo crítica que, todos os erros e, particularmente, a indolência e a inacção irão elevar o preço que estamos já a pagar, e em parcelas cada vez mais dolorosas. Enquanto os juros de mora acumulam, o editor adjunto da revista New York vincava que cada avanço decimal faz diferença quando se discute um aumento da temperatura. “Não podemos inverter o processo do aquecimento global, mas está ao nosso alcançe controlar as alterações climáticas de modo a evitar que em vez de termos de lidar com um futuro apocalíptico nos fiquemos por uma situação bastante sombria.”
A própria leitura de “A Terra Inabitável” tem um custo para a paz interior do leitor, para esses processos de dissimulação ou negação a que, hoje, todos nós somos obrigados, perante uma realidade noticiosa que constantemente nos assedia com as suas campanhas, muitas delas meramente publicitárias, em que o medo e o desejo são espicaçados para nos orientar a este ou aquele comportamento. Consciente desse outro custo, bem para lá do meio deste livro, Wallace-Wells dirige-se ao leitor elogiando a bravura que o fez ter chegado até ali, virando as páginas depois de se deter numa descrição após outra dos desastres que nos aguardam ou que, em muitos casos, estão já a suceder um pouco por todo o lado. Porque o futuro não surge aqui como uma profecia tresloucada e sanguinária, mas é uma previsão meticulosa e cheia de detalhe, deixando-nos diante de um fenómeno que virá abalar tudo o que damos por certo. Por esta razão, o terror é mais do que justificado. Socorrendo-se da autoridade do oceanógrafo Wallace Smith Broecker, que ajudou a popularizar o termo “aquecimento global”, Wallace-Wells adianta que quando este chamou ao planeta “animal em fúria” descreveu com alguma propriedade um sistema climático que, depois de décadas de abusos e de nos ter dado todos os avisos, “agora entrará em guerra connosco durante muitos anos, acabando talvez por nos destruir”. O jornalista tem reorientado o debate, como se disse, pondo a tónica na comunicação de uma crise que em breve, como ele vinca, não mais poderá ser entendida como um problema, simplesmente porque todo o problema deixa subentendido que haverá uma solução. Wallace-Wells encoraja-nos a pensar no nosso planeta como uma “máquina de guerra”, e que no ciclo actual “todos os dias lhe damos mais armas”.
Esta semana, a directora executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente veio lembrar que, depois de anos de proscrastinação, estamos neste momento obrigados a uma redução anual de 7,6% das emissões globais dos gases com efeito até 2030 para termos uma boa hipótese de conter o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius. Se este compromisso tivesse sido assumido em 2010, os cortes anuais poderiam ter sido bem menos drásticos, ficando-se por uma redução de 3,3%. É difícil extrair com alguma concretude a diferença que fará apenas meio grau de aumento de temperatura, e Wallace-Wells faz um bom trabalho a ilustrar as conclusões de uma infinidade de estudos, sendo que muitas vezes a profusidade da ciência do clima parece tornar-se o seu pior inimigo. Assim, ele lembra as contas apresentadas em 2018 num artigo da revista Nature Climate Change, depois de uma equipa de especialistas ter tentado quantificar o sofrimento que seria evitado se contivéssemos o aquecimento em 1,5ºC em vez de 2ºC. “A resposta: só por causa da poluição atmosférica, morreriam mais 150 milhões de pessoas num mundo 2ºC mais quente do que num mundo 1,5ºC mais quente.” Logo depois, reconhecendo o perigo de nos atrapalharmos diante de números de uma tal grandeza que se tornam abstractos, Wallace-Wells diz-nos que “150 milhões é o equivalente a 25 Holocaustos”, e insiste: “É mais do dobro do que qualquer balanço de mortes resultantes de uma única causa qualquer – o da Segunda Guerra Mundial”.
Para o jornalista, no centro da incompreensão e inércia que caracteriza a resposta que temos dado colectivamente à maior ameaça que alguma vez nos foi colocada está a ideia de que a mudança climática é um fenómeno, apesar de tudo, lento. Para Wallace-Wells isto é um conto de fadas, “talvez tão nocivo como aquele que afirma que ela nem sequer está a acontecer”. E logo acrescenta que este conto se embrulha com uma série de outros, compondo uma antologia de ilusões reconfortantes: “a ilusão de que o aquecimento global é uma saga ártica, que se passa algures num lugar remoto; a de que é uma questão exclusivamente relacionada com o nível do mar e o litoral, e não uma crise que envolve tudo, que não poupa lugares e que toca toda e qualquer forma de vida”…
Assim, e voltando a essas diferenças que não parecem ainda atemorizar ninguém, Wallace-Wells explica que mesmo na escalada para um aumento de 1,5ºC, a cada ano que passa pelo menos sete milhões de mortes são atribuídas à poluição atmosférica. E em face destes números, deixa a pergunta: “um holocausto anual provocado e prosseguido porque género de niilismo?” Entre os enganos e autoenganos que se reproduzem a uma velocidade cada vez maior, esses que escondem uma verdade apavorante como aquela que se prepara para abater-se de forma chocante contra as mentiras colectivas em que nos refugiamos, neste ponto vale a pena recordar as palavras de um génio proscrito da literatura do século XX, que lembrava que “ser a grande vítima da história não quer dizer o mesmo que ser anjo”. Nem com todo o sofrimento que nos espera se expiará a culpa de não termos agido a tempo.
“Muitas pessoas olham para o aquecimento global como se fosse uma espécie de dívida moral e económica, acumulada desde o início da Reviolução Industrial, e que surge para pagamento agora, ao fim de vários séculos”, escreve Wallace-Wells. “Na verdade, mais de metade do dióxido de carbono lançado para a atmosfera pela queima de combustíveis fósseis foi emitido apenas nas últimas três décadas (…) isto quer dizer que causámos tantos danos de uma forma consciente como causámos sem saber o que estávamos a fazer.”
Todos seremos chamados a responder porque não agimos mais cedo, porque não foi mais urgente e decisiva a nossa acção diante de uma ameaça que suplanta todas as outras. Aquele génio que evitamos nomear para que o seu juízo não possa ser aplacado pela banalidade do juízo que o cerca, culpou o individualismo. “É o individualismo inato que manda na festa, apesar de tudo, que mina tudo, que corrompe tudo. Um egoísmo louco, bilioso, resmungão, imbatível, embebe, penetra, corrompe já esta miséria atroz, ressuma através dele, torna-a ainda mais fedorenta.”
Recorde-se que, ao abrigo do Acordo de Paris, apenas duas nações (Marrocos e Gâmbia) estabeleceram metas em linha com o objectivo de que o aumento da temperatura se fique pelo grau e meio, e se outras cinco se comprometeram com metas que colocam a linha vermelha nos dois graus, as restantes nações celebraram aquele “marco” e logo atiraram a esperança aos lobos, fixando metas que garantem a catástrofe. Resta assim ver se, perante a ameaça cada vez mais concreta da aniquilação, escolheremos continuar iludidos com essas ficções e imposturas urdidas em nome da nossa felicidade individual, ou se, por uma vez, seremos capazes de enfrentar as imensas perdas e infelicidades que nos estão reservadas e, ainda assim, lutar para que os mais novos e aqueles que ainda nem nasceram não sejam os filhos da intolerável usura que marcou a passagem de uma geração pelo planeta.