Joacine Katar Moreira. A mulher para além da deputada

Joacine Katar Moreira. A mulher para além da deputada


No colégio diziam que era insolente e inconsequente. Acabou por revelar-se uma excelente aluna e a prova viva de que tudo se consegue com trabalho e dedicação.


Mulher, negra, gaga. Quem ouve falar em Joacine Katar Moreira pensa logo nestas três palavras. Mas é redutor descrever a deputada única do Livre com estes três conceitos. De estudante trabalhadora a defensora dos direitos das mulheres, Joacine já mostrou que não tem medo de arregaçar as mangas.

Nascida em 1982, na Guiné-Bissau, tinha apenas oito anos quando a avó a mandou para um colégio interno na zona de Mafra. Foi ela que criou Joacine e que lhe incutiu alguns dos valores que defende hoje em dia: “A minha avó era uma mulher absolutamente feminista, embora ela não faça ideia disso. Era uma mulher independente, uma enfermeira respeitada, divorciada, que, mesmo sem ter altos recursos financeiros, educou os filhos dela, os filhos dos irmãos, os filhos dos filhos. Era muito organizada, obcecada com a higiene e muito amorosa. A minha avó nunca levantou a mão para dar uma palmada a ninguém, mas o olhar dela – nem era de austeridade, era um olhar de desilusão – era suficiente para nos dizer tudo”, contou a deputada numa entrevista ao Diário de Notícias. No colégio, era conhecida como “la chica ente”: “Eu era tudo o que acaba em “ente”: impertinente, insolente, inconsequente. Passava o tempo todo a questionar tudo. Não me importava com aquilo com que a maioria das minhas colegas se importavam, que era com a roupa – não se podia usar blusas de alças nem saias por cima do joelho. Isso para mim era indiferente. Mas questionava muito as regras e as ideias. É mesmo necessário fazer assim? Não há outra forma de fazer? Então uma das irmãs dizia-me: ‘Joacine, la sociedade no te aguentará.’ Essa frase acompanhou-me sempre”.

Começou a trabalhar muito cedo, na apanha do tomate e da uva, na zona do Ribatejo. Era um trabalho difícil, que mostrava a exploração que existe no setor.

Ao mesmo tempo que trabalhava, estudava. Mas admitiu que o caminho nem sempre foi fácil e que chegou a pensar em desistir: “Fiz a minha licenciatura em História com imensas dificuldades, não houve um ano em que eu não pusesse a hipótese de desistir, porque não tinha dinheiro. Era a mais velha de 11 irmãos e não achava que iria ser eu a começar a exigir aos meus pais que me pagassem a universidade. Eles tinham mais era que se esforçar para meter água em casa, alimentar os meus irmãos e por aí fora”, contou ao i, numa entrevista publicada antes de ser eleita deputada da Assembleia da República.

Chegava a trabalhar oito horas num dia ou a fazer apenas as manhãs e a compensar aos fins de semana, trabalhando das 9 às 23 horas. “Trabalhei em lojas e como empregada de quartos… Também trabalhei com empresas de marketing. Andava, de hipermercado em hipermercado a dizer: “Minha senhora, boa tarde, já conhece a nova linha de produtos da Garnier?”. As minhas colegas da universidade iam ter comigo na minha hora do almoço, que era a única que tinha, para preparar os trabalhos da universidade”, explicou.

No último ano conseguiu uma bolsa de estudos e terminou o curso de História Moderna e Contemporânea – vertente de Gestão e Animação de Bens Culturais. A vida académica agarrou-a e acabou por tirar também um mestrado em Estudos do Desenvolvimento e um doutoramento em Estudos Africanos no ISCTE-IUL.

E a seguir à vida académica, veio a vida política e interventiva. Em 2018, ajudou a fundar o INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal. Antes disso, já estava ligada ao Livre, partido pelo qual foi eleita, a 6 de outubro, deputada da Assembleia da República. Conjuga agora o papel político com o de mãe, o de académica e ativista, lutando por causas como os direitos das mulheres, o fim do racismo e das desigualdades sociais.

Ao longo de todo este percurso, foi sempre acompanhada pela gaguez. “A gaguez é um ‘problema’ de quem gagueja mas também é um problema seu. De você que fica ‘constrangido’, que diz que é ‘sofrível’ ver alguém que gagueja, que se inquieta e se auto-desconforta. Não é fácil, claro. Mas fica mais difícil quando você não resolve o seu “problema”. O maior problema para uma pessoa que gagueja é a coragem de assumir a gaguez, de falar com e sobre a gaguez”, escreveu na página no Facebook.