A Cinema Prayer. Deus, os homens e Tarkovski

A Cinema Prayer. Deus, os homens e Tarkovski


Andrey Tarkovsky: A Cinema Prayer, um documentário sobre a vida e obra do cineasta soviético, é exibido amanhã no Porto/Post/Doc.


Stalker, Tarkovski pensou-o como uma espécie de D. Quixote. Uma dessas personagens “ideais”, que por isso mesmo acabam derrotadas na vida real, segundo explica. Uma personagem tão grande que ao filme que protagoniza Tarkovski deu o seu nome: Stalker. Depois de o ter estreado, em 1979, descreveu-o como “o mais bem sucedido” dos seus filmes. “Talvez o Stalker expresse o meu estado de espírito em que estou, como artista, desde os últimos anos”. Não são citações copiadas de textos escritos há 40 anos, é a voz de Andrei Tarkovski que se ouve. A voz resgatada pelo seu filho, Andrei A. Tarkovski, de gravações de arquivo e que põem o cineasta como narrador da sua própria vida no filme que o Porto/Post/Doc leva amanhã, às 21h30, ao Teatro Rivoli, no Porto: Andrey Tarkovsky: A Cinema Prayer.

Um documentário estreado na última edição do Festival de Cinema de Veneza em que é pela voz do próprio cineasta que percorremos as suas sete longas-metragens. De A Infância de Ivan (1962) a O Sacrifício (1986). Retirado da ordem cronológica da filmografia, apenas O Espelho (1975). O filme em que um homem à beira da morte recorda o seu passado, desde a infância — o mote perfeito para nos trazer a voz do realizador a falar sobre a sua própria infância, sobre a relação com a mãe (e sem o seu esforço durante a II Guerra garante Tarkovski que nunca se teria tornado cineasta) e sobre o seu pai, Arseni Tarkovski, cujos poemas, lidos pelo próprio, vão pontuando a narrativa.

Daí partirá para os anos da guerra e para como chegou a A Infância de Ivan, um quase acidental primeiro filme. Com excertos de filmes, fotografias e vídeos feitos pelo próprio nos lugares onde viveu, refletirá sobre o cinema, sobre a arte, a espiritualidade que no ocidente se ia já perdendo, o sentido da existência humana e o seu futuro. Andrey Tarkovsky: A Cinema Prayer é, segundo disse por altura da estreia o seu filho, que na realização se estreia com este filme, “uma tentativa de se aproximar de Tarkovski como pessoa, como artista e como pai”.

“Muitos livros e estudos se escreveram sobre Tarkovski e, mais de 30 anos depois de ele ter desaparecido, começamos a esquecer o que ele próprio tinha para dizer sobre a sua vida, o seu trabalho e o seu legado artístico. Para mim, foi uma necessidade encontrá-lo de novo, sentir uma vez mais a sua presença através do ecrã do cinema”, explicou o realizador em Veneza, citado pela Variety. “Tentei reunir as minhas memórias dele, o que ele dizia quando estava sentado no seu cadeirão a conversar com os seus amigos e familiares, a pensar alto sobre o nosso propósito na vida, Deus, a vida, a liberdade e o sentido da nossa existência. [E] dei por mim surpreendido por quão surpreendentemente contemporâneas, necessárias e poderosas as suas palavras continuam a ser ainda hoje”.

Depois de Nostalgia (1983), altura em que se mudou para Itália, ouviremos Tarkovski sobre a desilusão e sobre a perda, sobre o receio de que possa não existir um próximo filme, que na verdade ainda chegou. Estreado em 1986, o ano da sua morte, aos 54 anos, O Sacrifício, rodado na Suécia, seria o seu último filme. Em 1987, Ingmar Bergman contava na sua autobiografia, A Lanterna Mágica, que descobrir a obra do realizador soviético foi “um milagre”. E explicava: “Tarkovski é para mim o maior, aquele que inventou uma nova linguagem, fiel à natureza do cinema, ao captar a vida como uma reflexão, a vida como um sonho”. Também pouco depois da sua morte Akira Kurosawa elogiava a sua “sensibilidade fora do comum, tão avassaladora como surpreendente”. Para o cineasta japonês, Tarkovski, realizador que considerava não encontrar par entre os do seu tempo, atinge “uma intensidade quase patológica”.

E sobre milagres e patologias também ele nos fala afinal em Andrey Tarkovsky: A Cinema Prayer quando enumera aqueles a que um dia se havia referido como seus mestres, palavra que havia deixado de lhe fazer sentido. Bresson, Bach, Tolstoi, Leonardo, quatro nomes cujas obras, dizia, não se conseguem explicar. E estava certo da razão: “Os milagres são inexplicáveis”.