Selva!!!
Texto e Desenho: Filipe Abranches
Editora: Umbra Edições, 2019
Alvitre ao leitor: quando estiver com este livro nas mãos, comece não por ler, mas por observar; folheie demoradamente, deixe os olhos vogarem ao ritmo que o autor imprimiu a cada prancha, depois fixe as vinhetas, demore-se nas páginas, nos diversos e bem doseados planos dos quadradinhos, admire o excelente trabalho de claro-escuro, a partir, supomos, de vários tipos de canetas de feltro; chegue ao fim, e então comece a leitura. Está por sua conta.
“Pum!/ Qual Pum! É Bang! Isto é BD!/ ?/ Crack! à la Hugo Pratt./ Click! Vazio.// Toca a mexer malta, ou acabamos num caixote no sótão ou na Feira da Ladra.” Palavras iniciais deste livro de Filipe Abranches (Lisboa, 1965), Selva!!!: diálogos de soldadinhos de guerra em missão por floresta espessa ou sobre oceanos de mar revolto.
Todos quantos, rapazes (e raparigas, porque não?…), brincámos aos tiros com miniaturas, recordamo-nos dos incríveis teatros de guerra que criávamos. Índios e cowboys, aliados e nazis, unionistas e confederados, mouros e cruzados. Uns quantos livros de capa dura dispostos no chão do quarto dava para fazer um qualquer forte da cavalaria americana ou um castelo medieval, à falta de modelos de escala reduzida. Os bonecos eram da Britains, muito bem feitos, em resina de poliéster com uma base verde, de metal; ou então uns bonecos da Airfix, para quem quisesse e tivesse paciência para pintá-los… Experimentavam-se as táticas com a imaginação e a ajuda do cinema, televisão e revistas aos quadradinhos. Uma delas, aqui graficamente citada, o Falcão, com estupendas séries fixas, edições distribuídas pela Agência Portuguesa de Revistas: Sandor, Ogan, Oliver, Kalar e o Major Alvega.
História dentro da história, intromissão do real na ficção, uma vinheta em falta, pórticos que se atravessam, do mundo da imaginação ao mundo verdadeiro, onde a mentira é maior: a guerra tem sempre acoplada a palavra Paz, com maiúscula e tudo. Ainda agora a vimos, na operação Paz para a Primavera, turcos contra curdos, uns que contemporizaram com o Daesh, outros que lutaram contra ele, também em nosso benefício. Parece que há mais verdade na BD, mesmo que os intervenientes sejam de poliéster ou plástico.
No colofão, o autor lembra os pais, que lhe compravam saquetas com revistas aos quadradinhos para ler na praia, e agradece também ao Buck Danny, a quem roubou muitas vinhetas. Buck Danny, extraordinária BD de guerra e aviação criada pela dupla Jean-Michel Charlier – Victor Hubinon para a revista Spirou (os mesmos que conceberam o pirata Barba Ruiva para as páginas da Pilote). Sim, há aqui grandes quadr(ad)os inspirados na arte daquele mestre belga, homenagem com maturidade gráfica de quem já leva anos disto.
Onde está Tintim?…
Aventuras de Joana, João e o Macaco Simão – O Vale das Cobras
Texto e desenhos: Hergé (com Jacques Martin e Bob de Moor)
Editora: Difusão Verbo, Lisboa, 1981
Na década de 1930, Tintim suscitava reservas ao conservadorismo: não tinha família, não estudava, era demasiado livre. A revista Coeurs Vaillants propõe assim a Hergé uma série com crianças normais, inseridas numa família tradicional. Nascem então Jo, Zette et Jocko – Joana, João e o Macaco Simão, em português –, os gémeos da família Legrand, composta pelo pai engenheiro, a mãe doméstica e um chimpanzé.
O Vale das Cobras, em curso de publicação em 1939, foi interrompido e só retomado na década de 1950 pelos Estúdios Hergé, concluído por Jacques Martin (Alix, Lefranc) e Bob de Moor (Barelli, Cori, o Grumete), saindo o álbum em 1957.
Numa estância de neve na Alta Saboia, Joana, João e Simão cruzam-se com o Marajá de Gopal, rei dum país imaginário nos Himalaias indianos. O marajá merece, por estupidez própria, figurar na galeria das grandes personagens secundárias de Hergé, que o qualificava como um Abdalá (O País do Ouro Negro) adulto. Entra em conflito com os miúdos porque estes ousam ultrapassá-lo no esqui, e como se não bastasse ainda apanha com uma bola de neve em cheio na cara. Qualquer contrariedade tinha como punição mínima o açoitamento do infrator, pelo que as coisas poderiam não lhe correr de feição; mas intervém o pai Legrand. Sanados os hilariantes incidentes, o engenheiro é convidado pelo soberano a construir uma ponte numa região remota do país. O que ambos não sabem é que o seu vizir pretende dar um golpe e ser marajá no lugar do marajá…
Mesmo a seis mãos, trata-se de puro Hergé, dando ideia, ao virar de cada página, que Tintim vai aparecer por ali…