“A relação médico-doente sempre existiu desde que houve pessoas doentes e pessoas a tratar doentes, do tempo de mágicos, feiticeiros, faraós, e talvez seja por isso que guardou sempre, e ainda hoje tem, uma réstia de magia, do médico como alguém que intercede entre o doente e forças que durante muito tempo não se conheciam. A partir do séc. xix surgiram novas técnicas de diagnóstico e começaram enormes alterações, até aos dias de hoje”, resume António Barros Veloso, fundador da especialidade de medicina interna em Portugal e antigo diretor de serviço do Hospital dos Capuchos.
Aos 89 anos, está entre os autores mais seniores do livro de reflexões sobre a relação médico-doente que é apresentado esta segunda-feira pela Ordem dos Médicos, numa iniciativa de apoio a uma candidatura a Património Imaterial da Humanidade, da UNESCO, uma ideia lançada por médicos espanhóis em 2017 e que está a mobilizar a classe em diferentes países. Catarina Perry da Câmara, no último ano do internato de neurorradiologia no Hospital de São José – neste momento a terminar um estágio de seis meses no Grady Memorial Hospital, em Atlanta –, tem 30 anos e é das mais novas participantes no livro, com 81 autores, entre os quais antigos bastonários, médicos, mas não só. Descrever a ligação de que falam pode não ser simples, mas toda a gente que já foi a uma consulta, mais ou menos doente, saberá o que é pressentir a menor ou maior abertura, comunicação e empatia ou segurança. Concordam que é um dos pilares para chegar a um diagnóstico e que pesa na evolução e adesão aos tratamentos. E nas últimas décadas, dizem, aumentaram as interferências, das mais universais, como a crescente tecnologia, exames em vez de diálogo ou o tempo contado para consultas, às mais conjunturais, como a sobrecarga para dar resposta aos doentes e aos computadores dos hospitais públicos e centros de saúde que encravam e roubam minutos às consultas.
“Acaba por ser uma relação prejudicada por uma série de fatores de organização e pela burocracia – um computador demorar dez minutos a abrir, termos de ir imprimir uma receita e a impressora não funcionar, os tempos limitados para consulta, o número reduzido médicos nas equipas de urgência”, diz Catarina, também coordenadora do Conselho Nacional do Médico Interno.
As preocupações têm estado na ordem do dia, mas espraiam-se para lá disso. “As próprias condições de trabalho não facilitam por vezes que se estabeleça uma relação de confiança – por exemplo, não existirem salas à parte para ver os doentes, estarmos numa urgência separados por cortinas, com toda a gente a ver o que se passa”.
No hospital onde está a estagiar, os doentes em cuidados intensivos têm todos quartos separados e há quartos para as famílias – é um hospital público mas num sistema de saúde diferente, em que os seguros de saúde e doações de mecenas ajudam a financiar os hospitais. Além de melhores condições físicas, mais tempo para consulta e outras formas de organização poderiam libertar espaço para observação clínica, preparando o doente antes de entrar no gabinete, como já se faz, por exemplo, em consultas de diabetes nos centros de saúde, exemplifica. “Os valores são medidos pela equipa de enfermagem e o tempo de consulta é dedicado sobretudo ao diálogo e observação”. No dia-a-dia e na experiência que tem tido nos hospitais nacionais, ainda assim, Catarina sente que são mesmo os computadores que roubam mais espaço para ouvir o doente. “Temos novos softwares, mas os computadores são antigos na maioria dos serviços. Acho que, neste momento, o custo dos atrasos com os computadores é muito maior do que comprar computadores novos. Se em dez minutos de consulta gastamos cinco minutos de volta do computador e da impressora, torna-se complicado”.
Tempo e não só
Não é só o tempo, mas o olhar nos olhos que tem estado a perder-se, diz Barros Veloso. E se os ecrãs que tapam a vista aos doentes são barreiras mais recentes, o médico sublinha que as alterações que puseram de certa forma em causa a relação entre médicos e doentes foram acontecendo ao longo do tempo, sobretudo a partir da segunda metade do séc. xx, quando aumenta a oferta de exames de diagnóstico (o primeiro TAC foi comprado por médicos para a Cruz Vermelha em 1985, recorda), e também uma lógica mais económica na organização dos cuidados de saúde, a que se seguiu o interesse de grupos na multiplicação de atos.
“É uma relação profissional diferente de todas as outras. Envolve confiança, ética – um médico entra na intimidade das pessoas, faz-lhes perguntas indiscretas, despe-as para as observar. E, depois, empatia e compaixão. E é uma relação desigual: o doente é alguém que está fragilizado e espera que o médico o ajude. Durante muito tempo, dizia ‘estou nas suas mãos, o doutor é que sabe’, o que levou a uma relação um bocadinho paternal, mas que servia aos doentes e para os médicos representava, ao mesmo tempo, muitas dúvidas, insónias, incertezas”, recorda. “A tecnologia e as transformações sociais mudaram a relação, até no sentido de maior autonomia individual, e também dos doentes, mas aquilo que muitos médicos da minha geração foram sentindo foi que com isso se estava a perder muito do resto, o olhar nos olhos, o diálogo”, continua Barros Veloso. “Hoje olha-se o computador, seguem-se guidelines, que servem para um grupo de doentes mas não substituem o raciocínio clínico. A própria privacidade, a questão do sigilo médico, que sempre marcou a relação, pode ser posta em causa com toda a informatização. E a confiança: um médico faz uma TAC, uma ressonância, não vê nada, envia para outro, quando o médico tem de ser alguém que orienta o doente ao longo do percurso”, continua.
“A gestão dos serviços de saúde tornou-se mais centrada em números. Não estou contra as tecnologias e contra a boa gestão, porque a medicina hoje é muitíssimo cara e tem de ser bem gerida, mas é preciso preservar o essencial e a medicina precisa de tempo. Quando oiço que em alguns hospitais privados batem à porta passados 15 minutos a dizer que o tempo acabou, isso não faz sentido. O tempo da medicina é diferente do tempo da rentabilidade. Não digo para se voltar atrás, mas a medicina tem de ser eficaz, pragmática e humana”.
A doente a que ninguém tinha perguntado o essencial
Jubilado há 20 anos, Barros Veloso admite que lhe vão chegando relatos que o deixam angustiado, de pessoas a quem os médicos não fizeram perguntas e se limitaram a passar exames. Recorda um caso em particular, de uma doente que lhe enviaram depois de exames e tratamentos sem sucesso, para ver se resolvia o problema.
“Tinha aspirado uma espinha para um brônquio. Perguntei-lhe quando é que tinha ficado assim, disse-me que tinha sido depois de um almoço. Não tinha sido interrogada. Na minha geração conversávamos muito com os doentes e isso hoje perdeu-se um pouco, implica ter tempo e paciência para escutar também”. Havia um “sentido de equipa muito grande”, acrescenta, e figuras de referência na medicina que representavam os ideais de humanismo na classe. Hoje há uma maior despersonalização da medicina, em vários sentidos. “As carreiras médicas desagregaram-se. Tapam-se buracos nos hospitais com médicos operários, médicos ao serviço de empresas. Até eu recebo emails de empresas a perguntarem-me se quero ir fazer um banco na urgência aqui e ali, não sabem quem é o médico”.
Na pele dos doentes
Os ensinamentos continuam ainda a passar entre gerações. Catarina Perry da Câmara diz que muitas das dimensões da relação médico-doente e da observação e recolha de história clínica são transmitidas pelos médicos mais velhos e ajudam a contrariar alguma tendência que possa existir para assentar as decisões só em exames. “Dizem-nos muito que é essencial a observação do doente, desde que entra no gabinete. Há médicos que até abrem a porta para observar o doente a andar até à consulta. Todos os momentos de maior contacto com o doente nos podem ajudar no diagnóstico. Tem de haver um equilíbrio entre tecnologia e raciocínio, sem pedir exames só por pedir, mas também dando valor à tecnologia. Muitos dos resultados que temos hoje no tratamento de aneurismas e AVC não seriam possíveis sem tecnologia”.
Se a área em que quer trabalhar é feita de situações críticas em que se salvam vidas, Catarina diz que os momentos ao longo da sua formação em que teve uma perceção mais forte do alcance da relação com o doente foi ao dar assistência em cuidados paliativos, quando a perspetiva não é o tratamento. “Quando o objetivo não é curar, somos confrontados com outras prioridades dos doentes, que podem ser falar com um filho, ir à praia. Obriga-nos a fazer um exercício diferente de compreensão”.
Já na neurorradiologia tem havido momentos de confronto com as vezes em que são os médicos a afastar, por exemplo, uma madrugada em que percebeu que estava a usar palavras demasiado técnicas para explicar ao filho de uma doente com aneurisma o tratamento que tinha acabado de fazer e ele lhe disse que não tinha percebido nada. “Temos formação para evitar que isso aconteça, para usar linguagem simples, mas às vezes, por cansaço ou falta de tempo, acaba por acontecer”. E aqui há outras questões que considera negativas na organização do trabalho para esta relação de maior empatia, com a sobrecarga de trabalho extraordinário e existirem ainda bancos de 24 horas. “Como doente, não gostava de ser vista por alguém que estivesse a trabalhar há 24 horas”.
No que não depende tanto do sistema, Catarina tem uma ideia: “Costumo dizer que devia ser obrigatório todos os médicos e profissionais de saúde estarem internados uns dias”, diz, dando o exemplo de programas de treino da Fundação Khan. Já foi operada a um joelho, por isso já fez o seu estágio. Guarda sobretudo as atenções de quem lhe perguntou se estava bem e do cirurgião que veio explicar o que ia fazer. “Uma pessoa ter de se despir, pôr um roupão, ter pouca privacidade, estar num estado de fragilidade, vulnerável e dependente de cuidados: claro que teria custos, mas talvez fosse possível implementar essa experiência”, defende. “Se só se estiver do lado médico entra-se na rotina, e depois, com todos os outros fatores, é mais difícil parar para pensar se estamos a ter toda a empatia que precisamos de ter para com os doentes”. Barros Veloso não discorda, até porque ao longo do tempo já tem estado do outro lado. “Nesses momentos sente-se bem a diferença de quando nos observam e falam connosco”, diz.
A relação médico-doente – Um contributo da Ordem dos Médicos
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Editora: By The Book