Para além da constante falta de funcionários nas escolas, que tem levado ao encerramento de vários estabelecimentos de norte a sul do país, há outro tema que tem estado na agenda no início deste ano letivo de 2019/20, o da violência nas escolas. Durante o mês de outubro foram vários os casos a fazer correr tinta nos jornais, de episódios de violência entre alunos a agressões de encarregados de educação para com funcionários e professores, ou mesmo de alunos a professores.
Apesar dos vários casos registados, os dados do Ministério da Educação mostram que estes incidentes têm vindo a diminuir: “Os dados de 2019 estão a ser trabalhados em sede do Grupo Coordenador do Programa Escola Segura, que junta elementos dos ME e do Ministério da Administração Interna (MAI), os quais apontarão para um decréscimo significativo dos incidentes em recinto escolar”, referiu ao i o gabinete de Tiago Brandão Rodrigues.Segundo o Ministério da Educação, este decréscimo do número de incidentes de violências nas escolas “acompanha uma tendência já plasmada nos dois últimos relatórios anuais de segurança interna (2017 e 2018), que apontam para a diminuição de ocorrências no interior de escolas de 10,25%”.
Por sua vez, o Relatório Anual de Segurança Interna referente ao ano letivo de 2018/2019, mostra que as ofensas à integridade física, dentro e fora da escola, são os episódios com mais registos: 1521. Lisboa, Porto e Setúbal são os distritos que registam maior número de ocorrências por parte da Guarda Nacional Republicana (GNR) e da Polícia de Segurança Pública (PSP).
A revolta para com este tipo de situações nos estabelecimentos de ensino português foi tal que levou mesmo o Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE) a anunciar que vai solicitar “junto do Ministério Público, do Ministério da Justiça e do Ministério da Educação o reconhecimento de crime público para agressões a professores realizadas em contexto escolar”, com o objetivo de fazer equivaler estes casos aos de violência doméstica, onde qualquer pessoa pode apresentar queixa.
Apesar dos números mostrarem um decréscimo, Mário Nogueira, secretário-geral da Federação Nacional dos Professores (FENPROF), considera que a situação não é assim tão linear: “Eventualmente baixou o número de registos de violência, o que não quer dizer que baixou a violência. Há muita coisa que não é registada, infelizmente, até porque se uma pessoa não falar não se sabe se aumentou ou diminuiu”, refere. “O problema é que há muita gente que é agredida e depois não faz a queixa, ou que a agressão até não se passa dentro da escola”, acrescenta.
O representante da FENPROF explica que os professores são ameaçados “constantemente” e que “isso cria um clima de medo na profissão”. Segundo o dirigente, o “problema da indisciplina e da desobediência dificultam as aulas, fazendo de Portugal um dos países onde os professores mais perdem tempo de aula a tentar controlar essa mesma indisciplina”.
Mário Nogueira considera que os professores precisam de “ter coragem para denunciar este tipo de situações imediatamente, porque elas não são aceitáveis” e que “o Ministério e o Governo pouco ou nada têm feito para acabar, ou pelo menos atenuar, esta situação”. Para além disso, o secretário-geral da FENPROF sugere a constituição de um observatório de violência nas escolas, onde se possa “tipificar causas e que a partir da sua compreensão se possa idealizar propostas de medidas para reduzir o número de ocorrências de violência nas escolas”.
O relato de quem tem a coragem de falar
Sandro Gonçalves tem 47 anos, é professor de Físico-Química e conta com mais de 20 anos de serviço. Cristina Domingues tem 44 anos, é professora de Inglês e tem já 22 anos de serviço. Daniela tem 42 anos e é educadora de infância há 14. O que têm em comum para além da docência? Todos foram vítimas de violência enquanto docentes a certa altura da sua carreira e todos tiveram a coragem de relatar ao i os seus episódios, por forma a alertar e tentar ajudar na prevenção deste problema.
O caso de Cristina é o mais antigo dos três e remonta ao ano de 2011, tendo sucedido numa escola na Covilhã. A docente era diretora de turma de um 8º ano que já estava sinalizado devido aos seus antecedentes de problemas de indisciplina e violência nos anos anteriores. Por isso mesmo, Cristina Domingues começou desde setembro desse ano letivo a tentar solucionar este problema da turma. Nada tinha efeito, recorda.
Nessa turma, havia um aluno em específico que durante o 2º ciclo já tinha tido vários processos disciplinares e que até já tinha agredidos vários colegas nessa mesma escola. Contudo, a “diretora acabou sempre por abafar a situação, dizendo que se tratava de um aluno problemático e que vinha de um meio social difícil”.
No dia 7 de dezembro de 2011, a violência entrou de forma direta na vida desta professora. A indisciplina nesta turma era tanta que era necessário organizar uma fila de entrada para as aulas. Nesse dia, o reboliço era já muito na fila, com insultos entre os alunos. Ao entrar na sala, esse mesmo aluno com um historial problemático foi de encontro a outro, “deu-lhe murros e prendeu-o entre mesas, levando a que vários colegas o tentassem agarrar para o impedir”. Perante esta situação, Cristina chamou os auxiliares de ação educativa, que levaram o aluno para o gabinete da direção.
A professora tinha ficado na sala para acompanhar os restantes alunos, quando de repente esse aluno surgiu a correr na sala de aula. “Atirou-me contra o quadro, empurrou-me de forma violenta, enquanto gritava e me insultava. Depois encostou a cabeça à minha e ameaçou-me para não comunicar o sucedido à sua mãe”, relata Cristina.
De seguida, o aluno acabou por ser imobilizado e retirado da sala, deixando os seus colegas em lágrimas perante o que tinham acabado de presenciar. Cristina conta que pediu a um funcionário que chamasse a Escola Segura, mas que esse lhe respondeu que só o poderia fazer com a autorização da direção da escola. Direção essa que, segundo a mesma, em nenhum momento lhe prestou auxílio. Nesse dia à noite a diretora da escola ligou-lhe e a primeira coisa que perguntou foi se já tinha escrito a participação disciplinar. “Não houve qualquer palavra de apoio, não houve nada. Aliás basta ver que ninguém me veio auxiliar quando aquilo aconteceu. Fui eu que tive que chamar a autoridade e se não o tivesse feito provavelmente o tratamento dado àquela situação tinha sido o mesmo dos últimos anos, o de deixar andar. Foi isso que causou aquilo tudo”, considera.
A falta de apoio da parte da direção levou mesmo Cristina a reportar o caso à Inspeção-Geral da Educação. “Acabou por arquivar a minha queixa por não se conseguir apurar factos que levassem a um processo disciplinar para a diretora”, diz.
Quanto ao aluno em questão, esse acabou por ser expulso da escola e transferido para outro estabelecimento. Para além disso, foi ainda aberto um processo porque a professora havia feito queixa na polícia. Nesse processo, a grande maioria dos alunos que estavam presentes na aula nesse dia foi testemunha e o tribunal acabou por dar como provada a ocorrência em janeiro, sendo a penalização do aluno a instauração de um processo tutelar educativo, por este ter menos de 16 anos. O episódio deixou marcas tão profundas em Cristina que por muito tempo teve medo que esse aluno lhe aparecesse à frente e lhe fizesse mal. Para além disso, hoje encontra-se de baixa porque teve um AVC, quando “não tem nenhum historial que pudesse causar isso” e desabafa ter muitas saudades dos seus alunos.
A proteção de uma sentença e as marcas que vêm até hoje
Os casos de Sandro e Daniela remontam ao ano letivo de 2017/18. Após repreender uma aluna devido ao seu mau comportamento, Sandro Gonçalves viu a jovem sair da sala de aula sem dizer nada. Minutos depois, durante o segundo tempo dessa aula, apareceu a meio a aluna com a mãe à porta. Sandro relata que a senhora “chegou descontrolada” e que nem o deixou falar. “Chamou-me de tudo, desde ‘racista’, ‘filho da puta’ e ‘cabrão de merda’, por exemplo, e tenho a certeza que, se não tivesse chegado entretanto uma auxiliar, existiria violência física de certeza”, conta.
O caso deu-se no liceu Passos Manuel, em Lisboa, onde ainda hoje Sandro dá aulas, e o mesmo conta que após chamar as autoridades, também ele não teve qualquer apoio da parte da direção. A mulher acabou por ir a julgamento por dois crimes, um de injúria, pelo que havia feito a Sandro dentro da escola, e outro de denúncia caluniosa por ter contado mentiras às autoridades para prejudicar o processo. Só em outubro deste ano, acabou por ser condenada a 1440€ de multa, mais os custos do processo, indo presa se não pague. “Só em outubro deste ano é que chegou a sentença. Aí decidi partilhar a história porque isto não pode ser o que se passa nas escolas, onde os professores passam por tudo sem qualquer apoio da parte das direções que não querem ver os nomes das suas escolas manchados”, afirma.
Também Sandro considera que o episódio deixou marcas em si e admite que não teve medo “porque não fiz mal nenhum e não me bateram. “Se calhar se me tivessem batido não teria tanta vontade de dar a cara”, confessa o professor que vai inclusivamente mudar de escola por não se sentir seguro.
A história de Daniela é um pouco diferente. Nesse ano era educadora de infância na Amadora e estava num grupo de 25 crianças, dos três aos cinco anos. Conta que frequentemente alguns lhe batiam, cuspiam na cara e até chamavam de “puta”. “Cheguei a fazer participações disciplinares das crianças, mas só me diziam ‘coitadinhos, são muito pequeninos e não vamos agir’. Esquecem-se que as crianças crescem e ficam cada vez ficam mais violentas”, afirma. “Diziam que eram crianças muito pequenas e não sabiam o que estavam a fazer, no entanto, sabem chamar-nos nomes e mandar-nos à merda, sabem morder-nos, dar pontapés e bater-nos”, acrescenta.A situação acabou por chegar a um ponto de rutura e Daniela apanhou mesmo uma “depressão muito grande, um esgotamento” e teve que meter baixa médica durante sete meses. “A partir de abril não consegui continuar a exercer as minhas funções ”, refere.
O estado de Daniela era, e é, frágil, e mesmo com os relatórios médicos a dizerem que não estava apta para ir trabalhar, a junta médica obrigou-a a ir trabalhar no ano passado, pelo que teve de deixar a medicação repentinamente e ir para um agrupamento com mais de quatro mil alunos. Também aí teve episódios de violência verbal, que não ajudaram na recuperação. No final do ano letivo passado soube que tinha sido novamente colocada noutra escola na Amadora e desde aí que nunca mais conseguiu trabalhar, estando novamente de baixa. “Quando me lembro que tenho que ir para a Amadora só me lembro que vai acontecer tudo novamente”, explica.
Daniela confessa emocionada que tem pesadelos constantemente, sonha que está a ser violentada. Conta que já pensou mesmo em pôr fim à sua vida e que se não fosse o apoio da família, o seu “porto seguro”, isso poderia mesmo ter acontecido. Tem sido sempre colocada longe de casa, o que, segundo a mesma, não tem ajudado. Hoje o maior receio é que a voltem a obrigar a ir trabalhar sem estar preparada, como aconteceu no passado. Pretende regressar em janeiro, mas sabe que não é um dado adquirido que esteja pronta. “Chegamos a um ponto em que também estamos tão cansados e tão desiludidos com tudo que também nos deixamos ir e vamos aguentando. Até ao dia em que damos cabo da nossa saúde”, confessa a educadora.
Casos mais recentes
Entre os casos mais recentes de violência relatados neste ano letivo constam também episódios de violência de professores a alunos e de encarregados de educação a docentes. No dia 21 de outubro, um professor contratado agrediu um aluno do 8º ano na escola Rainha D. Leonor no dia da sua apresentação, pegando-lhe pelo pescoço e atirando a sua face contra a mesa por duas vezes. Foi instaurado ao professor um processo disciplinar, que ficou impedido de dar aulas em qualquer estabelecimento de ensino do país.
Nesse mesmo dia, o irmão de um aluno entrou noutro recinto escolar e agrediu um professor após desacatos entre dois colegas. Esta situação levou a que os pais reagissem e durante dois dias fizessem manifestações à frente da escola, onde fizeram um cordão humano, a pedir mais funcionários.
Alexandre Henriques é professor e criou o blogue ComRegras, onde recebem várias denúncias de agressões a pessoal docente e não docente. Entre as várias denúncias, Alexandre dá conta de escolas onde os colegas têm até medo de sair da sala de professores e ainda muitas aquelas de professores que não querem ver divulgados os seus nomes e das suas escolas “com medo das represálias”.
Neste blogue registam todas as situações conhecidas através da comunicação social ou que lhes são comunicadas, após a devida verificação dos factos. O contador tem já um total de 20 agressões a pessoal docente e não docente neste ano letivo.