Para os puristas da separação de poderes, a imunidade de jurisdição conferida a certos titulares de cargos públicos é algo absolutamente inadmissível. O poder político não deveria estar acima da lei e longe do poder dos tribunais para determinarem a sua aplicação. Poderemos tentar mostrar aos puristas a utilidade de conferir a imunidade de jurisdição de acordo com a função, limitando-a pelo tempo de duração do mandato e no exercício da mesma. É o que acontece em Portugal (como em muitos outros Estados) com os deputados à Assembleia da República, que não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções (n.o 1 do art.o 157.o da CRP). Mais difícil é o tratamento da imunidade relativa a actos de natureza não meramente opinativa e, em especial, aos praticados pelos titulares de órgãos singulares (as consequência para o mandato seriam mais pesadas). Em Portugal, seguindo o modelo republicano do constitucionalismo dos EUA (inaugurado em 1787…), o Presidente da República, por crimes praticados no exercício das suas funções, responde perante o Supremo Tribunal de Justiça (n.o 1 do art.o 130.o da CRP). A iniciativa do processo cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções (n.o 2 do mesmo dispositivo). A condenação implica a destituição do cargo e a impossibilidade de reeleição (idem, n.o 3). Concretizando a funcionalização da responsabilidade criminal, dispõe o n.o 4 do mesmo artigo: “Por crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Presidente da República responde depois de findo o mandato perante os tribunais comuns”.
As tropelias de Trump junto de um outro chefe de Estado com o propósito de reduzir as possibilidades de sucesso eleitoral de Joe Biden, o candidato democrata mais bem colocado para as eleições presidenciais de 2020, integram a categoria dos crimes praticados no exercício das funções de Presidente dos EUA. O mecanismo do impeachment, sujeitando a uma decisão política pelas duas câmaras da assembleia parlamentar eleita, é uma solução razoável, evitando um choque directo entre o poder político de um executivo eleito (o Presidente) e o poder jurisdicional (legitimado pela força da lei aprovada pela assembleia parlamentar).
A natureza híbrida do procedimento de impeachment, a meio caminho entre um procedimento eminentemente político e um procedimento jurisdicionalizado (as audiências no Congresso), tornam-no particularmente desadequado aos tempos comunicativos coevos. Já em 1978, Jerry Mander tinha demonstrado a completa falta de adequação da linguagem televisiva para a discussão de questões complexas (Four Arguments for the Elimination of Television). No tempo da ditadura das redes sociais, estas revelam-se, infelizmente, ainda mais desadequadas à discussão racional. O efeito de bolha multiplicado pelas redes sociais tem tanta capacidade de informação dos “enredados” como os programas televisivos dedicados à ciência do futebol na mudança de clube desportivo por parte dos respectivos telespectadores.
Trump será condenado na Câmara dos Representantes, onde os democratas têm uma maioria, e sobreviverá no Senado, controlado pelos republicanos. Mas o efeito do impeachment na sua imagem pode decidir as eleições presidenciais. Isto, claro, se os “enredados” não exclamarem: “Boring!”
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990