A Titi

A Titi


Caso Eça ainda fosse vivo, por certo transformaria a crónica social em crónica política. E teríamos uma nova Titi, tão sectária na sua crença política como a anterior na sua crença religiosa, e um novo Raposão.


D. Maria do Patrocínio, a Titi, e Teodorico Raposo, o Raposão, são duas fascinantes criações de Eça de Queiroz n’A Relíquia.

D. Maria do Patrocínio, fidalga solteirona rica, dona da Quinta do Mosteiro e de muitos outros haveres, sempre rodeada de padres e fanaticamente apegada à sua crença religiosa, e Teodorico, filho de D. Rosa, irmã da D. Patrocínio e de Rufino de Assunção, que de tocador de violão em Évora passou a diretor da Alfândega de Viana, por empenhos do bispo D. Gaspar de Lorena, são os protagonistas. Órfão, muito cedo, de pai e mãe, Teodorico ficou ao cuidado da Titi.

Educado na rígida observância dos rituais religiosos da Titi, missa, terço e visitas a igrejas e locais sagrados, foi crescendo e refinando em devoção, forma de agradar à Titi e herdar os seus bens. Já bacharel em Direito por Coimbra, empenhava-se em mostrar todo o seu fervor religioso em jejuns semanais e obras pias, não fosse a Titi morrer e deixar o espólio à Igreja.

Enternecida pelo fervor religioso do sobrinho, mas tendo-lhe recusado uma viagem a Paris, que considerava um antro de perdição, pediu-lhe para fazer, por sua intenção, uma peregrinação à Terra Santa, passando por Jerusalém e todos os lugares sagrados. Constrangido, o Raposão aceitou a troca e prometeu mesmo uma relíquia como recordação para a Titi.

Da prolongada viagem trouxe Raposão como relíquia sagrada a coroa de espinhos do martírio de Jesus. Mas, na confusão dos embrulhos, entregou à Titi a camisa de dormir, recordação de uma das suas conquistas de viagem. Enraivecida com tal afronta, logo a Titi o expulsou e deserdou. E o Raposão, assim desamparado, ficou a sobreviver vendendo relíquias falsas à porta das igrejas, mas depressa saturou o mercado e caiu na miséria.

Caso Eça ainda fosse vivo, por certo transformaria a crónica social em crónica política. E teríamos uma nova Titi, com tanto sectarismo na sua crença política como a anterior na sua crença religiosa, também sempre acompanhada pelos diáconos e diaconisas dos credos, agora três, que compõem a sua fé; e um novo Raposão, que tudo engendrava não já para obter a chave do pote da fortuna da Titi, mas a chave do pote do poder que só a Titi lhe poderia dar. E com esse fito se multiplicava em públicas demonstrações de seguidor ardente das devoções da Titi, selando mesmo um voto de submissão a alguns dos seus mais importantes rituais.

Cada vez mais exigente, a Titi impunha a cada passo novas devoções. Consumido pelos trabalhos cada vez mais esforçados para obter a bênção da Titi e que até o impediam de se passear em mais agradáveis cerimoniais europeus, Teodorico insinuou oferecer-lhe a relíquia que definitivamente a apaziguaria, a partilha do poder político.

E nesta luta e enternecimento continuaram, até que a religião da Titi perdeu seguidores, ocasião para o Raposão quebrar com os rituais da Titi, tentando seguir a sua própria crença.

Cento e cinquenta anos atrás, a Titi esconjuraria o sobrinho. Mas, com o tempo, a Titi sofisticou-se. E vendo que a criatura dependia do apoio do seu ainda poderoso braço para alcançar o pote do poder, e certa de que uma recusa sua levaria certamente a outras rejeições, não lhe cortou os laços, apenas lhe foi encurtando as rédeas.

Falhado no seu objetivo de dominação plena, o novo Raposão foi também obrigado a mercadejar promessas e alianças à porta das abadias à sua esquerda. Com um mercado já muito curto, desconfiado e exigente, viu a sobrevivência dependente das venetas da Titi, que só um longo e curvado beija-mão ia conseguindo atenuar. A Titi servia a sua desforra.

E é assim, neste caminho errático, que a coroa de espinhos que o Raposão não entregou à Titi se torna a relíquia que nos vai cabendo em sorte.

P.S. É claro que qualquer semelhança da ficção com a realidade é pura coincidência.

 

Economista e gestor

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”