Começa a ser frequente – talvez até demasiado frequente, por poder começar a roçar a banalidade – a notícia de que se assiste a uma rutura radical entre uma minoria de privilegiados e a esmagadora maioria dos cidadãos.
Somam-se análises e análises sobre o fenómeno e, no plano teórico, começam mesmo a inquietar-se os ideólogos e políticos que, muito recentemente ainda, apoiaram visões do mundo que qualquer observador menos desprevenido percebia, antecipadamente, que a isso iriam conduzir.
Muitos dos que agora parecem incomodar-se já com a situação alcançada diriam, tempos atrás, acerca do que eles próprios sobre ela dizem agora, que de comentários de radicais de inspiração marxizante se tratava.
Há duas maneiras de encarar tal perceção, atualmente já muito difundida, da grave desigualdade reinante: ou reivindicar apenas a primazia e o exclusivo da crítica acertada sobre a situação de injustiça gritante que vivemos, ou, partindo delas, ir também ao encontro daqueles que, tardiamente embora, e nem sempre muito esclarecidamente, começam a manifestar inquietação com o problema.
Chegámos, com efeito, a uma situação em que mesmo os que têm trabalho assegurado não conseguem garantir o sustento próprio e muito menos o da família.
E, dizendo isto, não me refiro apenas a todos os que, por exemplo, estão empregados com salários diminutos nas oficinas, nos campos, ou na hotelaria.
Refiro-me, também, àqueles quadros licenciados, mestrados, ou mesmo doutorados, que, apesar das muitas especializações e competências que adquiriram, não têm melhores remunerações do que aquelas que são oferecidas aos que não têm especial qualificação.
Em alguns casos, até, são-lhe oferecidos salários efetivamente mais baixos do que aqueles outros auferem.
Ter trabalho passou, portanto, a ser visto como um privilégio que, só por si, deve ser aceite com reconhecimento e, jamais, como um direito social que se destina, antes do mais, a assegurar uma vida digna para quem o desempenha e para a família.
Ter trabalho quase se inscreve, hoje, no imaginário ideológico dos que nos conduziram até aqui como o direito – se não mesmo uma obrigação – a uma mera terapia ocupacional, cuja utilidade para o próprio deverá ser agradecida e não compensada justamente como se impõe.
Ora, é este estado de coisas que, finalmente, parece começar a incomodar muitos sectores – alguns precisamente por causa dos próprios filhos já afetados – que antes pensavam exatamente como os que hoje ainda impõem tal modelo económico e social.
Não é, assim, apenas por medo do que vão vendo nos écrans das televisões sobre o que se passa no Chile, em França, no Equador e, noutro plano, por exemplo, no Brasil, que muitos responsáveis começam hoje a inquietar-se com este estado de coisas: é porque ele começa a entrar-lhes pela casa dentro.
Dada a tragédia social global que se adivinha, saber encontrar uma plataforma social e mesmo política – porque não um compromisso histórico, como antes se dizia – capaz de reverter a situação, é fundamental.
O que, em Portugal, se fez neste aspeto nos últimos anos foi importante, mas, reconheçamos, é ainda muito insuficiente.
É, desde logo, no plano social e depois político, mas mais imediatamente, também, no plano cultural e ideológico, que importa criar uma nova e mais alargada consciência social da injustiça que representa o modelo económico e social vigente.
Em nome da defesa conjunta do bem comum essencial – pedra angular de sustentabilidade de qualquer sociedade -, tal consciência deve ser construída, portanto, apelando, congregando e confrontando os mais variados setores políticos, sociais e religiosos com a sua imperiosa necessidade.
Só se tal consciência social se alargar e se tornar dominante, podem ser construídas soluções políticas suficientemente fortes para fazer recuar os sectores económicos e sociais mais rapaces que, nos últimos decénios, se apoderaram abusivamente da grande parte da riqueza do mundo.
O momento é propício e não pode ser desperdiçado.