Quase 30 anos depois da sua construção, a ponte militar de Tavira, histórica cidade algarvia, vai ser deitada abaixo – já começou, aliás. Até aqui, nada de polémicas: afinal de contas, essa foi uma obra feita em tempo recorde, supostamente de uma ponte provisória destinada a suprir uma necessidade premente da população aquando das cheias de 1989, que destruíram parte da histórica ponte romana e que impossibilitavam a passagem de uma margem do rio Gilão para a outra. Hoje, quase três décadas depois, são por demais evidentes os buracos e as fragilidades da estrutura, que de há três anos para cá já está inclusivamente fechada ao trânsito.
O problema, de acordo com uma falange considerável de tavirenses, é a ponte que irá surgir no seu lugar. As primeiras imagens da nova estrutura foram conhecidas em 2016 e desde então inúmeras vozes contestam não só a sua construção como também a forma como todo o processo foi conduzido pela autarquia.
A liderar as críticas está o movimento cívico Tavira Sempre, criado no início do mês e já com mais de dois mil seguidores na sua página oficial do Facebook – o concelho de Tavira tem aproximadamente 25 mil habitantes. O organismo, constituído por cidadãos dos mais diversos espetros políticos, profissionais e sociais da cidade, vai trabalhando diariamente no sentido de pedir aos tavirenses que se unam para travar a construção da nova ponte, ao mesmo tempo que apresenta questões que garante nunca terem sido respondidas pela autarquia.
“O projeto nunca foi alvo de discussão pública envolvendo a população e tem sido duramente criticado pela evidente falta de sensibilidade arquitetónica. A nova ponte terá dez metros de largura, em pleno centro histórico, a menos de 150 metros da ponte denominada romana, ex-líbris e cartão de visita da cidade, e não obedece a qualquer preocupação estética de integração da arquitetura típica da baixa tavirense. Com uma faixa para automóveis, a ponte vai causar uma sobrecarga de trânsito e poluição no centro histórico ao arrepio daquilo que é a tendência mundial de retirar pressão sobre as cidades. Mais ainda, vai obrigar ao corte da zona pedonal do icónico Jardim do Coreto e conduzir carros para zonas onde não há soluções de estacionamento e em que deveriam ser privilegiadas as zonas pedonais, geradoras da fruição do espaço”, pode ler-se no manifesto inicial do movimento, bem como na carta aberta enviada à presidente da Câmara Municipal (CMT), Ana Paula Martins.
“Este projeto foi sempre apresentado como único, definitivo e sem qualquer outra alternativa. Os cidadãos não tiveram opção de escolha, e a resposta à contestação foi sempre a de que este era O projeto e ponto final. A CMT tem ignorado, sistematicamente, ao longo dos últimos anos todas as críticas e perguntas, nunca explicando a escolha deste projeto, nem divulgando os estudos que o sustentam”, explica ao i Sofia Ferreira, membro integrante do Tavira Sempre. “A população não conhece o projeto. Pode ter sido discutido em assembleia municipal, mas a grande maioria da população não o conhece, nunca foi convocada para o discutir, para debater, para dar ideias. Na carta aberta incitamos a CMT a convocar a população, a pedir opiniões, a promover um debate e mostrar publicamente o projeto”, salienta Nuno Vaz.
“A CMT argumenta que o projeto foi ratificado em eleições por ter ganho com maioria absoluta. Sim, ganhou e tem toda a legitimidade de funcionamento, mas isso não significa que 100 por cento das decisões que toma sejam as corretas e que todos os eleitores que nessa lista votaram concordam em absoluto com tudo – em particular quando falamos de uma obra que vai mudar a paisagem de Tavira. O poder dos cidadãos não se esgota no dia das eleições, têm sempre direito a contestar qualquer decisão. A cruz no boletim de voto não significa assinar de cruz”, acrescenta Sofia Ferreira, considerando ainda “ridículo” o argumento de que a proposta para a construção da nova ponte foi aprovada em Assembleia municipal: “A CMT tem a maioria absoluta, quer no executivo camarário, quer na assembleia municipal. Portanto, o projeto ia sempre vencer”.
Trânsito de volta à baixa
Os membros do Tavira Sempre, que se apresentam como “cidadãos preocupados que desejam que a sua cidade não seja alvo de um retrocesso civilizacional”, põem inclusivamente em causa a forma como todo o processo decorreu. “A ponte foi sujeita a um concurso de ideias de engenheiros, mas não de arquitetura – e um engenheiro não tem competência para avaliar questões de integração na paisagem. Não foram ouvidos técnicos da área de História, de Arqueologia, de Arquitetura, de Urbanismo; não foram feitos (ou pelo menos divulgados) estudos de impacto ambiental – uma obra desta dimensão pode alterar o ecossistema do rio –, paisagísticos e arqueológicos; não há projeto para a envolvente, um plano de tráfego, projetos para arranjos exteriores. A nossa grande questão é: em que é que se sustentaram para apresentar este projeto como único e definitivo, levando trânsito para o centro da cidade?”, questiona Orlandino Rosa, lembrando que faltam respostas para questões tão simples como por onde sairão os carros da ponte – existe mesmo a possibilidade de o passeio público próximo do icónico Jardim do Coreto ser dividido para permitir a passagem de uma via de trânsito, que implicaria o abate de duas palmeiras que se encontram naquele espaço desde a fundação do jardim, em 1888/89.
“Foram feitas mais três pontes rodoviárias depois da queda da Ponte Romana, e mesmo a reconstrução dessa custou muito mais caro do que era suposto por ter levado microinjeções de betão para poderem passar lá viaturas de emergência, em caso de necessidade. Não é necessária mais uma ponte rodoviária naquela zona histórica e culturalmente sensível, especialmente uma obra tão pesada como esta. É uma lança espetada no coração da cidade, esta solução não serve para o local onde está a ser proposta”.
O facto de a nova ponte devolver o trânsito ao centro da cidade é, de resto, um dos principais focos de crítica por parte dos contestatários deste projeto. O movimento cívico lembra que Tavira, além de ser a comunidade representativa de Portugal na inscrição da Dieta Mediterrânica como Património Cultural Imaterial da UNESCO, integra desde 2008 o movimento internacional slow city (é um dos quatro sócios fundadores em Portugal), que promove conceitos como praticar exercício físico, andar a pé, proteger e preservar o ambiente, respeitar a cultura e os costumes e promover “a tranquilidade, as zonas pedonais, a fruição dos espaços públicos para as pessoas e as famílias” – tudo inversamente proporcional à ideia de carros a passar pela baixa da cidade. Há, até, quem considere que nem faz sentido construir uma nova ponte, dado existirem outras quatro no espaço de 1,5 quilómetros.
Autarquia responde… mas pouco
O projeto foi abordado publicamente pela primeira vez em março de 2016 no site oficial da autarquia. Quase dois anos depois (janeiro de 2018), Jorge Botelho, então presidente da CMT e hoje secretário de Estado da Descentralização e Administração Local, defendia, em declarações ao jornal regional Sul Informação, que a construção da nova ponte, uma estrutura de betão de 88 metros de comprimento e dez de largura, tendo uma via pedonal e ciclável e outra de trânsito e orçada em 1,5 milhões de euros, fora “validada expressamente pelas pessoas nas eleições autárquicas”, devido ao facto de a ponte estar “no programa eleitoral”, e justificava a via de trânsito automóvel com a necessidade de fazer um “investimento projetado ao longo dos anos”, admitindo a possibilidade de a ponte estar “aberta ou fechada” à circulação automóvel consoante as necessidades identificadas pela autarquia.
Na mesma intervenção, Jorge Botelho garantia ter “todos os pareceres” necessários para arrancar com o projeto e, em resposta às críticas sobre a vertente estética da ponte, dizia que a mesma “é mais bonita na realidade do que nos desenhos apresentados”. “Não percebo qual é a realidade que ele viu, uma vez que a ponte ainda não existia!”, salienta Nuno Vaz, corroborado por Sofia Ferreira: “Já diz o ditado: quem feio ama, bonito lhe parece!”
Com a contestação a subir de tom e o movimento Tavira Sempre a ganhar seguidores, a autarquia, liderada desde outubro por Ana Paula Martins, até então vice-presidente, acabou finalmente por vir a público prestar esclarecimentos. Em comunicado enviado às redações, a autarca lembra que o avanço do projeto foi desde o início noticiado no site, nas redes sociais, na comunicação social e na revista municipal, bem como em stands de festas e feiras de verão nas diferentes freguesias do concelho, e também numa sessão de apresentação do projeto (destinada apenas a autarcas) com o responsável pela sua elaboração, o Engenheiro Júlio Appleton, onde “foi explicada detalhadamente a preocupação com a estética, a funcionalidade e o enquadramento com a envolvente”.
Ana Paula Martins considera que o desenho da nova ponte corresponde a “uma reinterpretação contemporânea das construções formais existentes no local” e que a infraestrutura se caracteriza pela “simplicidade, leveza e qualidade de acabamentos”. “O projetista é conhecedor da cidade e teve a preocupação de pensar numa ponte que se diluísse na paisagem e que fosse o mais discreta possível. A ideia é que não entre em conflito com a Ponte Romana, o nosso ex-libris, e com o resto do centro histórico. Houve, inclusivamente, um estudo de quais as cores a ser utilizadas, levado a cabo pela Universidade de Lisboa. Não é verdade que a ponte tenha sido posta ali sem pensar na envolvente, essa preocupação está bem patente”, assegurou a edil tavirense em declarações ao Sul Informação.
Ana Paula Martins, de resto, garante não perceber a contestação ao projeto. “Para mim, estar a fazer um investimento desta dimensão e não deixar preparada a possibilidade de haver uma via de trânsito, nem que seja para veículos de emergência, não faria sentido. Mas a ideia será sempre manter uma lógica pedonal e dar alguma continuidade àquela que foi a requalificação da Praça da República. Ou seja, será sempre dada preferência ao peão e o trânsito será sujeito a regras muito apertadas, podendo ser fechado em determinados períodos, como já acontecia com a ponte militar. Mas a faixa está lá e, à partida, é para ser utilizada, pois acho que faz sentido ter uma parte de trânsito”, assevera, considerando que “um projeto deste tipo não carece de discussão pública” e frisando que “há muita gente a favor da ponte”, nomeadamente entre os comerciantes da baixa.
Em declarações ao Público, Ana Paula Martins acabou ainda assim – e em consonância com algumas das críticas que são apontadas à autarquia – por admitir que, apesar de as obras já se terem iniciado, alguns elementos do projeto estão ainda “em estudo”, nomeadamente no que toca à envolvente e ao escoamento do trânsito, ou mesmo se este irá, de facto, passar na nova ponte. “Ainda não está decidido se vai ter circulação automóvel ou apenas via para veículos de emergência. O plano ainda está em fase de elaboração e prevê a requalificação das margens do Gilão, bem como a forma como o trânsito vai fluir”, salientou.
crença total Respostas que, no entender do Tavira Sempre, responderam… a muito pouco. “Além de não responder a nenhuma das questões que colocámos na carta aberta, a única coisa que faz é mostrar que quando o projeto foi apresentado quer às empresas, quer depois na sessão fechada a autarcas, quer nas publicações nos variados canais, já era um projeto fechado e dado como definitivo”, reagiu entretanto o movimento.
“O que queríamos mesmo é que a CMT parasse um pouco o processo para fazer os estudos que estão em falta e, no limite, rever o projeto no sentido de tentar amenizar o impacto que vai ter na envolvente. Queríamos uma discussão alargada e responsável sobre o que se vai passar. Mas a CMT tem-se mostrado intransigente, não deixando margem para mudar o que quer que seja. Houve um suposto concurso público, mas nunca ninguém viu as propostas concorrentes nem foi feita sequer uma exposição pública, a CMT não fez uma apresentação pública em condições. Porquê a ausência de um debate alargado com a presença da população de Tavira? E porque não um referendo?”, questionam os integrantes do movimento.
No horizonte estão agora várias hipóteses, todas no sentido de travar os trabalhos da construção da nova estrutura – incluindo uma providência cautelar. “Não vamos desistir. Acreditamos que esta obra possa ser suspensa, que este projeto possa vir a ser reformulado e que algo melhor possa surgir”, salienta Sofia Ferreira. “Este movimento não é contra a existência de nenhuma ponte, é simplesmente contra este projeto de ponte. Não queremos destruir ou impor nada, mas sim ajudar a corrigir erros. E, ao contrário do que também já tem sido dito aqui e ali, não somos um movimento com interesses políticos, não somos da oposição: simplesmente nos opomos a uma obra que irá condicionar todas as vivências da população durante gerações”, acrescenta Orlandino Rosa.
Uma das críticas que tem sido feito ao movimento cívico, por parte dos defensores da obra, prende-se com o timing do seu aparecimento: apenas quando se iniciaram as obras para substituir a ponte militar pela nova estrutura. “O movimento só surgiu agora porque as pessoas sempre esperaram que reinasse o bom senso e que o projeto nunca avançasse, de tão estapafúrdio. Mas chegámos a um momento em que a obra começou e um grupo de cidadãos juntou-se e disse: ‘Se quem tem responsabilidade e poder nada faz, vão ser os cidadãos a tentar mostrar que Tavira é uma cidade das pessoas e não de decisões tomadas dentro de gabinetes sem justificações’”, salienta Sofia Ferreira, acrescentando: “Não se compreende como a CMT tem tantas exigências em relação a qualquer obra que se faça naquela zona e depois despeja em cima do rio, no cartão postal da cidade, um mono de betão completamente desproporcional e que não tem um projeto de arquitetura consolidado”.
Por agora, as obras vão decorrendo, estando o fim dos trabalhos agendado para o início de 2021. “Para o ano, Tavira celebra 500 anos, o que irá atrair muita gente à cidade, e especialmente ao centro histórico. Até por isso, não faz sentido nenhum começar esta obra nesta altura”, realçam os integrantes do Tavira Sempre, que ainda assim olham com uma convicção férrea para o futuro próximo. “Acreditamos que iremos conseguir travar a construção desta ponte, se não não estávamos a lutar. Tavira tem um histórico de projetos cujas obras páram a meio da construção, por este ou aquele motivo – e até por isso a CMT devia ter mais cuidado agora, porque o prejuízo pode vir a ser muito maior no futuro. A ponte não vai ser concretizada tal como está neste projeto”, referem ao i. O futuro (mais ou menos imediato) assim o dirá.