Rua da Prata. O último sopro do homem  do Balão?

Rua da Prata. O último sopro do homem do Balão?


O quarteirão da Confeitaria Nacional e da antiga loja de roupa de criança O Balão foi vendido no ano passado ao fundo Apollo. O antigo dono daquela loja, que até hoje mantinha uma camisaria na porta do lado, não vai embora sem mostrar a sua indignação. E está aos olhos de todos.


Emílio Filipe conhece como ninguém aquele quarteirão da Rua da Prata – o último do lado esquerdo, que faz esquina com a Praça da Figueira. O prédio pombalino onde hoje tem uma loja de vestuário de homem foi vendido no ano passado pela Fidelidade ao fundo Apollo, que queria que saísse já no fim de setembro, mas Emílio conseguiu ganhar mais uns meses, pelo menos até luzes de Natal se apagarem. As suas montras – lado a lado com a antiga loja de roupa de criança O Balão, de que foi até há poucos anos proprietário – não escondem o que sente: “Prédio Vendido. Inquilino Furiiiiioso”.

“Pensei muito antes de afixar isto na montra e o palavreado poderia não ter sido aquele, poderia ter sido mais ofensivo”, explica ao i o dono da loja que hoje é também a montra da indignação de muitos lojistas e de muitos moradores da Baixa lisboeta.

“As pessoas percebem qual é o palavreado que eu pretendia, há espanhóis, brasileiros que já disseram que foi uma ideia espetacular. Muita gente o disse. Uns brasileiros chegaram aqui e disseram-me: “Só entrámos por causa daquele ‘furiiiiiioso’. Não era aquilo que queria dizer, pois não?”

Na loja ao lado, a Blue Kids, Gabriela Gonçalves ainda pouco sabe sobre o futuro da única loja de rua do grupo e, por isso, sobre o seu futuro. É responsável de loja e todos os dias ouve as histórias de quem por ali trabalha e vive: “Sobre esta loja não me disseram ainda nada, mas pode escrever à vontade que toda a gente está bastante revoltada, principalmente as pessoas com mais idade”.

“Não sabem se lhes arranjam outra casa, se lhes dão alguma compensação, se vão dizer que têm de sair no dia seguinte. As reformas não chegam e as pessoas estão preocupadas. Ainda agora saiu daqui uma senhora que a reforma dela é pouquinha, nem tem dormido. Diz que não sabe o que vai ser da vida dela, diz que está farta de andar à procura de casa, mas não consegue, porque a reforma não dá para os preços de aluguer que lhe pedem, sobretudo nesta zona, que foi onde viveu a vida inteira”, conta, afirmando que está tudo no mesmo barco: “Elas não sabem o futuro delas e eu não sei o meu”.

Em muitas das lojas do quarteirão, a ordem é para não falar sobre o assunto por enquanto. Um desses casos é o da Botilã, uma retrosaria que fica num primeiro andar do mesmo quarteirão, com entrada pela Praça da Figueira. Ao i, uma das funcionárias disse que o responsável da loja não estava disponível para falar com jornalistas, não adiantando sequer se o grupo Apollo também já havia comunicado que teriam de sair.

Também a Confeitaria Nacional não explicou qual a sua situação atualmente, nem se há a possibilidade de sair daquele local. Ao i, a responsável deste estabelecimento deu apenas o contacto do escritório, mas os proprietários, contactados ontem à hora de almoço, não enviaram qualquer resposta até à hora de fecho desta edição.

A Fidelidade confirmou apenas que vendeu os imóveis a sociedades do grupo Apollo no ano passado. Já este grupo norte-americano, confrontado com os despejos, nomeadamente com o caso de Emílio Filipe, não enviou qualquer resposta até ao final do dia de ontem.

Um homem, dois despejos Apesar de não contestar a legalidade do despejo, Emílio Filipe sente-se injustiçado. É que não está apenas a braços com o despejo da loja que ocupa há dez anos naquela rua por uma renda de cerca de 200 euros.

“Tenho 74 anos e era uma situação que não esperava”, diz o homem que já foi chefe de compras nos antigos Armazéns do Chiado, teve uma fábrica e várias lojas. “Isto [ser empresário] é uma guerra diabólica. Tive sorte? Tive, porque não gasto mais do que posso”, desabafa.

“Temos outra loja no Rossio, que o Fundo de Pensões da Caixa Geral de Depósitos também nos disse para sairmos em março ou abril. Eu levei os nossos contratos de arrendamento, esses de 1951 – em 1990 comprei as quotas aos sócios que lá estavam e remodelámos a loja –, e agora, assim de caras, dizem ‘têm de sair’. Antigamente as pessoas falavam, agora não”.

Nesse caso, Emílio Filipe não espera uma derrota: “Estou otimista porque não saio, só se os gajos me partirem aquilo é que saio. E vai para tribunal. Aquilo é uma loja pequenina, mas que está no Rossio entre os dois chapeleiros, que também receberam ordem de despejo”, diz, explicando que fica junto ao McDonald’s.

E é essa loja que poderá ser a salvação para o escoamento da roupa da Rua da Prata: “É que nós compramos a roupa entre seis e oito meses antes, logo, já tínhamos coisas apalavradas”.

Se Emílio Filipe não conseguir uma outra loja com uma renda acessível, conta, ficarão desempregadas cinco pessoas. “Já temos esquema preparado para as indemnizações: por acaso temos dinheiro para pagar, por acaso há”, diz, revelando que ainda pensa que poderá vir a abrir portas num outro local da Baixa: “Andamos a tentar ver um buraco para ver se transferimos a malta, uma loja igual a esta”.

E se, no caso da loja do Rossio, não entende a forma como está a ser tratado, quanto à loja vizinha do antigo Balão é mais condescendente: “Se me puser na posição de quem tem muito dinheiro e quer investir e negociar, eu compreendo. Uma coisa é eu vender uma camisa e ganhar três ou quatro ou cinco ou dez euros, outra é um gajo comprar um prédio e ganhar dois ou três milhões. E os investidores estão tranquilos, quietos, têm quem faça isso por eles. Se eu pudesse, também fazia a mesma coisa”.

A ele cabe-lhe continuar a lutar pelo que lhe dá gozo, mesmo contra a opinião da família: “É evidente que não estou preparado para deitar a toalha ao chão, isto é giro, lidar com fornecedores que têm confiança em nós”.

“Eu trabalho desde os 11 anos, a minha mulher fica doida, diz para não me meter nisto, mas isto é um bichinho”, diz com um sorriso.