Na rua Novo Mundo, um dos sítios mais turísticos no centro de Varsóvia, há quase duas bandeiras polacas por poste de luz. Ainda são 12h, mas a rua já está cheia de gente. O ambiente é de alegria e vê-se o sorriso estampado nos rostos. Há muitas crianças, muitas vezes em carrinhos. E toda a gente traz a bandeira polaca consigo de alguma maneira. Em braçadeiras, chapéus ou coroas de flores vermelhas e brancas na cabeça. Nas braçadeiras é comum ver o emblema de Kotwica, símbolo que representa a resistência contra a ocupação Nazi.
A Marcha da Independência da Polónia, em Varsóvia, é conhecida por ser uma das maiores demonstrações de nacionalismo de extrema-direita do mundo. No 101º aniversário de independência do país, a iniciativa não teve o carimbo oficial do Governo polaco, que participou noutros eventos paralelos. E não teve tantos participantes como no ano passado – 200 mil pessoas. As autoridades polacas falam em 40 mil, enquanto os organizadores da marcha apontam para 150 mil. Ao contrário do que se pode pensar, não são grupos extremistas que compõem a maioria da marcha. A grande massa de participantes são famílias, adolescentes, estudantes, jovens, mulheres, que também puxam o pulmão para gritar: “Deus, honra e pátria mãe!”.
A marcha só começa às 14h, mas já se ouvem petardos a rebentar. Quando nos aproximamos do local onde se inicia o desfile, na rotunda de Dmowski, no coração da capital polaca, ao lado do Palácio da Cultura, a roupa preta começa gradualmente a ser dominante, juntamente com equipamento militar. E a bandeira da Polónia.
Há várias bancas a recolher assinaturas contra a lei 447 ou “Justiça para sobreviventes não compensados”. Os Estados Unidos aprovaram uma medida, em 2017, que prevê que o Departamento de Estado realize um relatório para o Congresso, analisando os passos dados no sentido da compensação dos sobreviventes do Holocausto, em 47 países diferentes, e a Polónia tem apresentado algumas medidas nesse sentido, sem nunca ter aprovado uma lei. “As exigências judaicas vão tirar-nos 3 milhões de zlotys [700 mil euros] do nosso orçamento. Se dermos de volta aos judeus, as nossas crianças vão passar fome”, ouvia-se repetidamente.
Dez minutos antes do início da marcha, as pessoas estão a rezar, numa espécie de missa. O i desloca-se para a zona onde está concentrado o grupo Campo Radical Nacional (ONR), um dos organizadores da marcha, na avenida Jerozolimski. As caras tapadas com lenços negros multiplicam-se, estão a rezar em voz baixa. Toca as 14h e começam a cantar o hino polaco em uníssono. Há cada vez mais caras tapadas e as tochas vermelhas acendem-se. O fumo é tanto que nem se vê o Palácio da Cultura, que tem 237 metros de altura. “Deus, honra e pátria mãe!”, gritam em massa quando o hino acaba.
Os petardos começam a rebentar com maior frequência, a cada dois ou três minutos. Do hino, passa-se para o hip-hop: “A Babilónia está a arder, mas Deus vai salvar-nos”. Ao contrário do que disseram ao i, a polícia não é uma presença forte. Atrás do ONR estão três polícias de choque e um carro com polícias de trânsito. A mensagem política centra-se principalmente no ataque ao aborto, aos direitos LGBT (“desmoralização da juventude”) e à imigração em massa. “A Polónia recebe mais imigrantes do que qualquer outro país da UE”, discursaram. Momentos antes do início do desfile, os participantes vociferam: "A Marcha da Independência vem aí!".
Alguém prende uma faixa contra os direitos LGBT no hotel Metropol. Toda a gente se vira para trás e aplaude o gesto. À tradutora do i, um homem pergunta se percebe o que está a ser dito. “Sei o que estás a traduzir”, avisou. O i mostra o cartão de imprensa: “Don’t worry my friend, don’t worry”. É difícil deslocar-nos por causa de tanta bandeira. Contra os direitos LGBT, discursou o psicólogo norte-americano Paul Cameron: “Corajosos polacos, levantem-se contra a propaganda LGBT”. Mais à frente, a sul da avenida Jerozolimski, não há tanto barulho, mas de vez em quando vão gritando de novo: “Deus, honra e pátria mãe”. Nota-se que não são participantes organizados, mas também gostam de empunhar tochas vermelhas – um casal com um carrinho bebé tira uma fotografia com a tocha, à beira do desfile.
Nas margens da marcha, Varsóvia parece uma cidade em cerco, com as ruas do centro cortadas e a cidade paralisada. Paralela à Jerozomlimski, na rua Nowogrodzka, o i encontra um contingente policial com cerca de 40 polícias de choque num beco. “É aqui que se escondem”, disse alguém que passou, entre risos. A polícia não deixa ir além por causa da contra-manifestação antifascista.
Deixa de haver silêncio na Jerozomlimski e os gritos “Nós, polacos” começam a ser constantes: “Honra e glória para os nossos heróis”. Alguém prende num edíficio uma faixa com as cores da bandeira polaca, LGBT e com a estrela judaica e muita gente aplaude – é retirada pouco tempo depois. Os símbolos religiosos são uma constante, juntamente com bandeiras celtas. Veem-se várias pessoas vestidas de bispo com fotografias de Jesus Cristo presas nas costas. “Em vez de folhas, vamos enforcar comunistas nas árvores”, gritam. O i também ouviu: “Os pedófilos são entusiasta da esquerda”.
Percorrida a Jerozomlimski, cerca de três quilómetros, pouco antes da ponte Poniatowskiego, onde se dirigiam para o Estádio Nacional, um grupo ajoelha-se para fazer as suas preces virados para um retrato de Jesus Cristo, enquanto a marcha percorre e passam ao lado cartazes contra o aborto. A noite caiu e as tochas vermelhas começam a magoar os olhos. O fumo avermelhado tapa a vista para o estádio. “Não ao arco-íris, não ao laicismo”, cantam. Ao lado da marcha, um contingente policial de quase duas dezenas cerca um grupo que tem um cartaz onde se lê: “Nacionalismo não é patriotismo”.
Weronika, 58 anos, não quis dar o seu último nome ao i. Explicando que era um dia feliz para a Polónia, argumentava que não se podia dizer que o evento era racista. “É um país independente que é amigável para as outras nações”, disse, afirmando não ter testemunhado nenhum discurso de ódio. “Vejo isto como uma demonstração de felicidade”.
Daniel, 44 anos, também não quis dar o seu último nome ao i. Acompanhado pela família, sua parceira e suas duas filhas, que acenavam em acordo com o que afirmava, defendeu que a marcha era um momento de cultura. “Uma ocasião para celebrar”, apontou, elogiando o facto de a marcha ter sido participada por mais famílias este ano.