Recentemente fomos todos surpreendidos com uma reportagem no programa “Sexta às 9” da RTP sobre uma suposta benesse que o Governo estaria a preparar com o Grupo Mota-Engil, por intermédio da empresa EGF, a propósito da recolha e tratamento dos biorresíduos, através de um despacho interpretativo do Governo acerca dos resíduos abrangidos pela concessão atribuída à EGF.
Esta notícia surge na sequência de uma eventual denúncia ao Ministério Público por parte da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) a quem compete entre outras coisas definir as tarifas a aplicar pelos diversos sistemas (multimunicipais e municipais) e que se repercutem nos cidadãos, normalmente através da fatura da água.
Aparentemente a situação aparece-nos como bastante simples, mas a realidade é um pouco mais complexa. Não querendo entrar em questões exclusivamente jurídicas, podemos afirmar que na década de 90 do século passado, o Governo criou os sistemas multimunicipais (empresas que tinham como acionistas a Administração Central, através da EGF e os próprios municípios) ao abrigo do princípio da subsidiariedade, para apoiar os municípios nas suas obrigações de gestão de resíduos sólidos urbanos.
Foi neste enquadramento que surgiram pelo país empresas como a VALORSUL, SA, detida pela EGF, mas também por 19 municípios da região de Lisboa, entre os quais o município de Lisboa.
A legislação aplicável à gestão de resíduos é muita e é nesta intrincada teia legislativa que todos os que operam com resíduos têm de enquadrar a sua atuação, com o objetivo final de cumprir com as metas ambientais definidas no Plano Estratégico dos Resíduos Sólidos Urbanos (PERSU) e assumidas junto da UE.
Desde 2004 que a Valorsul, SA procede à recolha de biorresíduos em Lisboa, tendo em 2005 celebrado contrato com o município de Lisboa, para que este proceda à recolha deste fluxo de resíduo a troco duma contraprestação financeira pelo serviço, o que permite que a tarifa de resíduos que Lisboa cobra aos seus munícipes seja menor.
Não obstante o Decreto-Lei que criou a VALORSUL atribuir, no n.º 1 do artigo 5.º, a responsabilidade da recolha seletiva na área geográfica do sistema, existe agora o entendimento que o contrato de concessão apenas se refere à apelidada recolha seletiva trifluxo (papel/cartão; embalagens e vidro), esquecendo que foi construída pela Valorsul, em 2004, uma estação de tratamento de valorização orgânica de biorresíduos e que a recolha e gestão, dos mesmos, sempre foi assumida pela empresa que gere sistema desde essa altura.
O município de Lisboa faz a recolha dos biorresíduos pela qual recebe uma contraprestação financeira e a Valorsul assume os investimentos em conjunto com Lisboa e os custos da operação que são absorvidos na tarifa cobrada pelo Sistema ao município. Esta relação, que foi clarificada no Despacho do Governo que, e segundo a comunicação social, foi considerado não conforme ao ordenamento jurídico, num parecer da Procuradoria Geral da República permitiu que só em 2018 o município de Lisboa recolhesse seletivamente 28 mil toneladas deste fluxo de resíduo que representa 30% do total do país de acordo com os últimos dados do Relatório do Estado do Ambiente.
Perante tudo isto perguntamo-nos o que é que mudou agora, para considerar que os biorresíduos não estão abrangidas pela obrigatoriedade legal prevista no n.º 1 do artigo 5.º do DL n.º 108/2014, para além da privatização em 2014 da EGF por parte do Governo de Passos Coelho?
Sendo que o entendimento que existia antes da privatização da EGF era um e agora é distinto, perguntamo-nos como é que o Governo pretende cumprir as metas assumidas em Bruxelas quanto aos resíduos urbanos? Perante a incapacidade financeira dos municípios quem irá arcar com os custos de implementação e recolha dos biorresíduos, agora que os sistemas multimunicipais não o podem fazer? É que ao contrário do que se afirma, são raros os municípios que já hoje procedem à recolha seletiva de biorresíduos e os que o fazem, como Lisboa, apenas o fazem com a contraprestação financeira e investimento efetuado pelo sistema, o que agora se impede.
Pedro Vaz
Jurista