Sempre gostei de ler, e gosto cada vez mais (se é que é possível usar a palavra “mais” a respeito desse meu gosto). E, apesar de o tempo minguar e, pior, a visão encolher, leio cada vez mais, em detrimento de outras ocupações dos chamados “tempos livres” (pobre e redutora expressão para mencionar tempos e ocupações tão essenciais). Se calhar, cresce a leitura na direta proporção do aumento da sensação de urgência que o passar dos anos traz. Ou, porventura, aumenta porque ganha ainda mais corpo a necessidade de busca de outros mundos reclamada pela intensa imersão no mundo-da-vida. Ou, mais provavelmente, trata-se em mim (e mais e mais, à medida que os anos correm e assim me afasto da meninice, exceto na memória) daquilo que Javier Marías diz a respeito do seu gosto pelo futebol nessa crónica magnífica (que abre Selvagens e Sentimentais – Histórias do Futebol) que é “A Recuperação Semanal da Infância”: “O que realmente sei é que não há desporto que angustie mais, quando é angustioso. Mais ainda: no meu caso particular, confessarei que é das poucas coisas que fazem com que hoje reaja – exatamente – da maneira como reagia quando tinha dez anos e era um selvagem, a verdadeira recuperação semanal da infância”.
Pois, é como eu com os livros, a recuperação (diária) da infância. Mas, ao mesmo tempo, os livros têm a capacidade de nos mostrar, entre o mais, algo que é central no mundo adulto: a colocação das coisas em seu sítio, e a cada um de nós no seu exato lugar, precário e necessariamente menor do que muitas vezes julgamos. O que – citando ainda Marías – será “angustioso”, sobretudo para aquelas fases da vida de alguns (que dão em idades diferentes, dependendo da pessoa e dos seus caminho e contexto, ou até podem nunca dar) em que já não se é tão jovem para ter medo de avançar nem tão maduro para saber moderar ou dosear a soberba e/ou a grossura da voz. Aí, os livros – talvez como a glória sempre efémera do futebol – podem ensinar muito.
E, para mim, não há escrito que coloque melhor as coisas (e a nós) em seu sítio do que esse conto, curto e muito penetrante, de Clarice Lispector, que é “Uma Galinha” (in Laços de Família, de 1960). Uma galinha de domingo que está para ser morta e comida, que põe um ovo, que é poupada e feita um ser importante pela família, que vive mimada, entre a apatia e o sobressalto, com laivos de pequena coragem e vislumbres de grandeza, até que acaba, às mãos da mesma família, no lugar para o qual estava destinada: a panela. Pena não poder transcrever aqui todo o conto, ficam só algumas frases, e recomendo a leitura, em especial aos que estão a passar pela fase da “imoderação” (chamemos-lhe assim). “Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. … Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. … – Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem! … A galinha passou a morar com a família. … A galinha tornara-se a rainha da casa. … Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.” Pois é.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira