Filões televisivos, cada país terá o seu. Em Portugal, namoram-se agricultores, celebram-se casamentos com desconhecidos, exploram-se as possibilidades e os meandros dos relacionamentos amorosos; no Reino Unido, depois do sucesso de Hunted, um reality show em que os participantes eram desafiados a manter-se a monte o máximo de tempo possível ao longo de 28 dias, fintando polícia, serviços de inteligência e equipas no terreno, sempre dentro de território britânico, o Channel 4 apostou as suas fichas num novo programa que tem como objetivo testar as fronteiras do país. Para isso, os participantes (que vivem já no Reino Unido, importará dizer) devem ser capazes de entrar de volta no país a salto, fintando o controlo das autoridades.
E se Hunted oferecia já motivos de sobra para discussão, a polémica em torno de Smuggled começou ainda antes de ter ido para o ar primeiro episódio – cuja transmissão foi, de resto, cancelada depois da notícia, a 23 de outubro, de que 39 pessoas tinham morrido num camião frigorífico em Essex, quando alegadamente tentavam entrar no país sem documentos. Adiada a estreia por respeito às vítimas, o Channel 4 não demoraria mais do que uma semana a pôr no ar o primeiro episódio de Smuggled, nesta segunda-feira. Mas uma semana não foi o suficiente para que o infortúnio fosse esquecido. E o Ministério do Interior britânico, responsável pelo controlo das fronteiras, não demorou a reagir, acusando o Channel 4 de “insensibilidade e irresponsabilidade”. Segundo declarações off-the-record que estão a ser citadas pela imprensa britânica, terá mesmo chegado a sugerir a cadeia televisiva responsável pela transmissão de Smuggled de ter “sangue nas mãos” ao, através do programa, estar a incentivar à reprodução das estratégias e das rotas transmitidas por traficantes reais.
Depois de na segunda-feira à noite terem sido transmitidas na televisão britânica quatro tentativas de entrada no país fugindo ao controlo das autoridades, não foi apenas o Ministério do Interior a insurgir-se contra o novo programa apresentado como reality documentary. Uma pessoa escondida num armário, outra coberta de casacos atrás dos bancos da frente numa carrinha que assim foi capaz de chegar de Dover a Calais, um passaporte falso ou mesmo um homem a cruzar o Canal da Mancha num barco a remos – isto é apenas um resumo daquilo que se pôde ver num primeiro episódio que gerou discussão.
Um “espetáculo” que se a uns parece desrespeitador daqueles que arriscam as suas vidas ao tentarem entrar no país sem documentos, leva outros a argumentar que as preocupações expressas pelo Ministério do Interior não são de cariz moral ou sequer securitário, mas antes a colocação a descoberto das suas falhas. “Se um indivíduo tentar uma das [táticas] usadas, e morrer, aí a estação poderá ter, como o Ministério do Interior argumentou, ‘sangue nas mãos’”, escrevia ontem Mark Lawson no Guardian. “Mas do Governo pode dizer-se que tem já os seus dedos cobertos de vermelho ao permitir que o tráfico de migrantes seja tão simples como Smuggled o faz parecer”.