Quem viu Joker, o recente filme de Todd Phillips, e não se limitou a apreciar a impressionante interpretação de Joaquin Phoenix, ou se deteve apenas na contemplação da angústia opressiva provocada pelo isolamento cruel e injusto da personagem a que ele dá vida ou poderá ter também ficado tocado pela premonitória descrição da revolta violenta que assola Gotham City, a mãe de todas as metrópoles atuais.
Questão não menos evidente, mas significativa, é, nesse contexto de revolta e violência, a referência explícita à degradação dos já de si paupérrimos serviços de saúde públicos e, mesmo assim, a sua anunciada extinção em função da prevalência dos interesses económicos e financeiros dominantes.
Depois de assistirmos ao que se vai passando em Santiago do Chile, em Quito, em Barcelona, em Bagdade, em Beirute e em Paris, com os gilets jaunes, não podemos deixar de refletir sobre a onda de revolta urbana que incendeia as metrópoles do mundo.
O fim da História está, afinal, a mostrar-se incendiário.
A brutal rutura dos já frágeis laços que iam unindo as comunidades, o abandono pelas elites dominantes de um programa – mesmo que mínimo – de sustentação do bem comum e que, independentemente das reais contradições que ia gerando, sempre serviu de cimento à sociedade, parecem ser, afinal, o pano de fundo de todas essas revoltas.
Era esse programa, por ínfimo que fosse, que ia permitindo que os cidadãos se congregassem em torno de projetos coletivos e que, apesar dos planos desiguais em que se concretizava, a todos ia, de facto, beneficiando.
A consciência do evidente abandono de um roteiro para a igualdade, que uns iam consentindo, mesmo que a contragosto, e os outros, com mais ou menos paciência face aos escolhos incompreensíveis que se lhes deparavam, prosseguiam, apesar disso, confiantes, produziu, por fim, o incontrolado incêndio das cidades do mundo.
A verdade é que, de repente, apesar do fumo que sobra dos fogos do lixo urbano ateados pelos revoltados, tudo parece mais claro, mas menos risonho às classes populares.
O caminho do futuro foi-lhes mesmo bloqueado e tal impedimento não se lhes afigura ter outras justificações que não a pura ganância de uns tantos e a inoperância de um Estado claudicante e mercenário, que a devia conter para bem de todos, mas não o faz.
As classes populares têm, por isso, cada vez mais consciência da sua condição presente e do declinante futuro das suas situações económicas, sociais e mesmo culturais; futuro menor que não aceitam, por lhes parecer incompreensível e injustificado.
É, pois, no plano da injustiça – uma injustiça que deriva da consciência da inadequação entre as reais possibilidades de desenvolvimento material e as relações de progressiva desigualdade que, apesar delas, se geram na sociedade – que crescem as atuais revoltas das classes populares.
Encontrar soluções políticas, credíveis e efetivas, que permitam superar as condições que levaram à rutura social entre os que não mais aceitam ser sacrificados e os que tudo querem alcançar à custa daqueles, parece ser o único caminho para evitar um tal afrontamento, por ora desordenado e, em alguns casos, apenas destrutivo.
O que está hoje em causa é o confronto entre um modelo democrático reduzido a um puro formalismo – essencial, mas limitado em si mesmo – e a exigência social de uma democracia verdadeira e socialmente progressiva que ofereça aos cidadãos o que eles têm já consciência de poder ter, agora e no futuro.
É a superação urgente desse impasse que se exige do Estado e dos que foram democraticamente escolhidos para o servir, tendo prometido que o fariam.
Ver Joker com um olhar crítico e atento poderá ajudar a tomar consciência da premência das mudanças.