Para o presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, a Lei de Bases da Habitação poderá vir a resolver o problema da habitação em Portugal. No entanto, admite que os 5% de património que o Estado poderá colocar no mercado de arrendamento a preços acessíveis será insuficiente para resolver o problema da falta de casas. Romão Lavadinho aponta o dedo aos proprietários pelos preços considerados especulativos e lembra que nem na periferia das grandes cidades é possível encontrar rendas a valores acessíveis. E apesar de garantir não estar contra a propriedade privada nem contra os senhorios, até pelo contrário, não concorda que os mesmos não façam obras, despejem as pessoas, façam bullying e contratem capangas para ameaçar os inquilinos.
A habitação é um problema que continua a afetar os portugueses e parece não ter fim à vista. O que espera deste Governo?
Espero que ponha em prática a lei que aprovou e que foi publicada a 1 de outubro, que é a Lei de Bases da Habitação. Era uma lei que vínhamos a reivindicar há vários anos. Entendíamos que não podia haver apenas o artigo 55 da Constituição que diz que as pessoas têm direito a uma habitação condigna de acordo com os seus rendimentos, mas, na prática, isso não sucedia. E porquê? Não havia intervenção do Estado e os proprietários privados é que disponibilizam a oferta no mercado. Neste último Governo, conseguimos isso e ainda outra coisa, que foi colocar na ordem do dia a habitação. Há dois anos praticamente não se falava no assunto e hoje todos falam na habitação, no arrendamento, no bullying, nos despejos. Era uma realidade que não se queria admitir. No Governo de Passos Coelho foi aprovada uma lei que veio trazer grandes problemas para os inquilinos, porque viram retirados quase todos os direitos que tinham, e transferiu esses direitos para os proprietários. Agora, este Governo, com a Lei de Bases aprovada, tem todas as condições para poder colocar no mercado de arrendamento propriedade pública nacional ou municipal para poder responder às necessidades das famílias, porque ter só a propriedade privada a responder a essas necessidades não basta e o resultado está à vista: a especulação imobiliária continua a existir e a ser a prática diária. Os valores da renda são completamente incomportáveis para a maioria das famílias. Uma família que receba o salário mínimo não consegue pagar uma renda de mil ou 1100 euros na periferia de Lisboa e do Porto.
E, mesmo aí, os valores já são elevados…
Por exemplo, se formos para a Amadora ou para Sintra, os valores praticados também são incomportáveis. Acredito que na zona a sul do Tejo ainda seja possível encontrar algumas soluções, como no Barreiro ou na Moita, mas em Almada já se praticam os preços de Lisboa. O Governo tem uma grande possibilidade de resolver este problema. Mas o que precisa de fazer? De regulamentar a lei e de avançar com uma nova lei de arrendamento, dado que a anterior já devia ter sido revogada há muito tempo. Se o Governo considerar no Orçamento do Estado do próximo ano não uma verba de 40 milhões, como considerou este ano, mas uma verba com um valor muito mais significativo, então teremos a perspetiva de que, a médio prazo, o problema da habitação e do arrendamento possa ser resolvido. Por exemplo, a Câmara Municipal de Lisboa vai colocar no seu orçamento 100 milhões para a habitação; então e o Estado central vai colocar quanto? Quarenta milhões, como colocou este ano? Não pode ser. Chegámos a falar com a secretária de Estado Ana Pinho, que nos garantiu que este ano era mais uma verba só para fazer de conta, mas que no futuro iria ter um valor bastante significativo. Vamos ver se vai suceder. Agora vamos apresentar a nossa proposta e a perspetiva é que o Governo cumpra aquilo que tem vindo a prometer. Lamento que, na campanha eleitoral, a generalidade dos partidos não tenha falado muito na questão da habitação e do arrendamento.
Esse discurso foi mais notado na campanha das autárquicas…
Exatamente, porque os autarcas são mais confrontados com esses problemas. O Governo e a Assembleia da República estão muito longe das pessoas. A Câmara de Lisboa tem vindo a tentar resolver – julgo, melhor que o Governo – a questão da renda acessível.
Ainda assim, os concursos que lançou apresentavam valores altos…
Isso foi um erro de uma empresa que é a SRU [Sociedade de Reabilitação Urbana], que pôs no mercado essas casas a concurso. As casas não podem ser lançadas por concurso, porque posso oferecer 600 euros, mas há alguém que tem mais possibilidades e oferece 800, e a câmara entrega a casa por 800 euros. Os imóveis têm de ser disponibilizados através de inscrição das famílias e mediante essa inscrição é feita uma avaliação em função dos rendimentos, do número de pessoas do agregado familiar, do emprego, etc. Há uma série de parâmetros que têm de ser avaliados. É impossível uma família pagar uma renda de mil ou 1100 euros se ganhar o salário mínimo. Discute-se muito a questão da pobreza, mas uma família com mil euros ou 1100 euros está quase no limiar da pobreza, que é 460 euros. Está a trabalhar e é pobre. Fala-se muito nos problemas de desemprego, dos deficientes, mas há um problema de que só agora se começa a falar e que é fundamental: é que ninguém pode viver sem ter uma casa. É preciso que o Governo e a Assembleia da República percebam isso. A habitação é uma questão fundamental para a vida das pessoas. Ninguém pode viver na rua, ninguém pode viver debaixo da ponte. Vimos os sem-abrigo e vimos a sua situação: ora, um casal não pode viver nestas situações. Também não pode viver em barracas. Não se compreende que no séc. xxi ou constroem uma barraca para viverem ou não têm onde viver.
Mas a ideia de o Estado colocar os seus imóveis no mercado vai demorar muito tempo…
Pode não demorar muito tempo. A Câmara de Lisboa diz que, no final deste ano, já terá algumas casas para colocar no mercado de renda acessível. A minha perspetiva é que, entre esta legislatura e mais um ou dois anos, podemos encarar a hipótese de o problema estar resolvido e de o Estado responder às necessidades das famílias portuguesas. Não é amanhã, não é no final deste ano, mas tem de começar a ser feito. A Assembleia da República não aceitou uma proposta que fizemos, que era todas as casas que estivessem devolutas, que não estivessem no mercado de arrendamento e que fossem de propriedade privada fossem requisitadas pelo Governo. O Governo recuperava essas casas, colocava-as no mercado de arrendamento e, logo que tivesse sido pago o valor que o Governo despendeu, a casa seria devolvida ao proprietário. Não sei bem porquê, mas a Assembleia da República não aceitou essa solução.
Houve uma grande pressão do lado dos proprietários, que falavam num ataque à propriedade privada…
Não é verdade. O que defendemos junto dos vários partidos na Assembleia da República era que a propriedade que estava desocupada, e tendo a habitação um caráter social, fosse disponibilizada no mercado a preços acessíveis.
O que considera rendas acessíveis?
O que propusemos e o que a Câmara Municipal de Lisboa definiu é que a renda acessível varie entre os 150 e os 600 euros, mas para estes valores máximos estamos a falar de um T4. Hoje em dia, um T4 em Lisboa custa dois mil ou 2500 euros por mês. Isso são valores acessíveis só para algumas pessoas. O Governo diz que a taxa de esforço devia ser de 35%. Isto quer dizer que um casal que ganhe os tais mil euros tem de despender para habitação 350 euros, e isso é muito dinheiro. Nós defendemos uma taxa de esforço de 20% e, neste caso, a renda máxima seria de 200 euros. O que me dizem e que contesto é que esse é o valor da taxa de esforço das famílias europeias. Mas esquecem-se que, em Portugal, o salário mínimo são 600 euros; se for para o Luxemburgo, para a Bélgica ou para a Alemanha, o salário mínimo anda à volta dos dois mil euros. Pagar 35% de dois mil euros não é a mesma coisa que pagar 35% de mil euros. E mesmo com estes 35%, o que sucede é que muitas famílias vão ficar de fora desta possibilidade de terem um arrendamento numa casa com valor acessível porque o valor que recebem não dá para pagar uma renda. Uma família em que cada um ganhe mil euros – e não é um salário muito alto – só tem direito a ter uma casa se conseguir pagar 700 euros, porque são os tais 35% sobre os dois mil euros. Se o valor da casa for acima dos 700 euros, essa família nem pode concorrer a uma casa de renda acessível. A grande parte das famílias da classe média e média-baixa não vão ter acesso a estes contratos de renda acessível a nível nacional.
Tem ideia de quantas casas seriam precisas em Lisboa para resolver este problema?
Segundo o Governo – e nós não acreditamos –, foi feito um levantamento das necessidades de casas a nível nacional e apontam para 26 mil. Este inquérito foi feito através das autarquias e estas tinham um determinado número de perguntas-limite, logo, quem tinha direito a responder a essas perguntas foram os tais 26 mil. Os outros que responderam não foram considerados. Consideramos que um número mais ou menos redondo andará à volta dos 50 mil fogos necessários, para o país, para as famílias com necessidades, da classe média, média-baixa. E isso também resolve o problema do imobiliário – as casas, hoje, estão com valores completamente incomportáveis. Em Lisboa, o mínimo que se consegue são cerca de 200 mil euros por um T0. Um T1 vai para os 250 mil euros e um T2 vai para os 300 mil euros. Quem é que pode pagar esses valores? Mesmo pedindo ao banco, ele não empresta e, mesmo que emprestasse, qual seria o rendimento que a família teria de ter para poder pagar um empréstimo de 250 mil euros? Não é possível. Além disso, há outro problema. Diz-se que o arrendamento pode ser substituído e, em alguns casos, está mesmo ser substituído pela compra de casa, mas quem é que pode comprar casa? O tal casal que tenha os tais dois mil euros de rendimento para comprar a casa tem à partida, segundo as instituições bancárias, de dar no mínimo entre 10 e 20% de entrada. Se comprar uma casa de 200 mil euros, tem de pagar de entrada 40 mil euros. Quem é que da classe média e média-baixa tem 40 mil euros disponíveis para pagar? Claro que se tiver esse valor de entrada, depois, a prestação pode ser inferior ao valor da renda de uma casa. Mas quem é que tem esses 20% disponíveis? É que, há 15 ou 20 anos, a pessoa comprava a casa. O banco emprestava para a casa, para comprar automóvel, mobílias e até para ir de férias. Emprestava para isso tudo. Hoje não é assim. É possível e acho que é necessário que haja uma solução para este problema e a solução é as famílias terem direito a uma casa própria; agora, nas condições que temos neste momento, não é possível.
E depois não há alternativa porque o arrendamento é muito caro…
Exatamente. Por isso é que exigimos ao Governo que fizesse esta Lei de Bases da Habitação, que colocasse no mercado o maior número de casas para arrendamento que concorressem com o mercado privado. Neste momento, a propriedade pública é apenas 2% da totalidade quando, na maior parte dos países, é 15% ou 25%, e a secretária de Estado disse que, nos próximos anos, talvez conseguisse chegar a 5%, mas mesmo 5% é muito pouco. Há muito mais do que 5% de famílias a necessitar de casa e que não têm condições para pagar estas rendas especulativas.
E estes 5% não davam para responder aos tais 50 mil fogos…
Fica muito aquém disso. Vamos ver se o novo Governo está de acordo em alterar isso porque as alterações que foram feitas à lei de 2012 foram muito insuficientes. É o caso do seguro de habitação para evitar que o inquilino tenha um fiador porque, hoje, ninguém quer ser fiador de ninguém. Colocámos a questão de ter um seguro das partes internas da casa para, quando o inquilino saísse, o proprietário não ter aquilo que muitas vezes tem, que é mandar reparar a casa porque fica muito degradada. Além de ser facultativo, propusemos que fosse um seguro nacional.
A lei de bases fala de subsídio de renda, mas não diz como vai funcionar nem em que montante…
Temos aí uma posição muito clara. É uma verba que tem de estar contemplada no Orçamento do Estado. No Governo de Passos Coelho foi publicada uma lei que permitia o pagamento de um subsídio do valor da renda. Mas o que era este subsídio? Era um subsídio que iria dar uma benesse aos proprietários muito grande porque, a partir de determinada altura, o inquilino pagava 200 euros, mas o proprietário dizia que o valor da renda era 500 euros – então, o Estado iria pagar a diferença entre os 200 que o inquilino pagava e os 500 euros que o proprietário dizia que recebia. Diziam que dava 25 milhões de euros por ano – é mentira. Dava muitas centenas de milhões de euros se este subsídio fosse para a frente. O que fez este Governo em 2015? Anulou este subsídio. O que dizemos em relação aos subsídios é que devem ser pagos temporariamente, mas para quem precisa. Não pode ser vitalício porque hoje pode precisar, mas amanhã não. Além disso, deve ser pago consoante o valor da renda, e não o valor de renda especulativa. É o que acontece atualmente com a Câmara de Lisboa, que ajuda no pagamento de rendas. Quem não consegue pagar o valor da renda vai à câmara, inscreve-se e, depois, a câmara paga uma parte desse valor. É esse tipo de subsídio que aceitamos: temporário, enquanto não se conseguir pagar. A câmara fez isso por um ano e quem tiver novamente necessidade desse subsídio terá de se inscrever. Se a câmara conseguiu resolver esse problema, e bem, então o Estado, a nível central, tem também de resolver dessa maneira.
Esses subsídios poderão ter algum limite, como a idade?
Fala-se muito nas pessoas com mais de 65 anos, mas consideramos que o RAU, que era a lei anterior a 1990, só garante a continuidade do arrendamento a pessoas com mais de 65 anos ou com pessoas com 60% ou mais de incapacidade. Consideramos que isso não é justo porque há pessoas com 50 anos com arrendamentos anteriores a 1990 – então, por que razão não podem ser beneficiados? A questão da idade é importante na questão do despejo. Uma pessoa com mais de 65 anos, se for despejada, o que vai fazer? Se calhar, já não tem força para estar a mudar móveis nem para ir à procura de uma nova casa, e isto não pode acontecer. Não é um contrato vitalício, é um contrato de arrendamento que pode até ser aumentado de acordo com o valor da inflação.
Estamos a falar de aumentos de 1%…
Pode ser mais. Há três anos foi 3%. Depende do valor da inflação. Mas mesmo para uma pessoa que paga, por exemplo, 300 euros, 1% é muito dinheiro. Claro que para quem ganha três mil ou quatro mil euros, 1% é mais um café, menos um café.
Falou muitas vezes de rendas especulativas. Muitas vezes são apontados o turismo e os fundos de investimento como os principais responsáveis por estes valores praticados. Acha que é só isso?
Não é só isso. A questão que se tem colocado ao longo do tempo é: porque é que há rendas especulativas? Porque os proprietários ou não colocam no mercado o número de casas que têm disponíveis ou, quando as colocam, pedem valores completamente incomportáveis, e se têm alguém que lhes arrende a casa nessas condições, muito bem. Se não têm, deixam estar a casa vaga. E porquê? Porque praticamente não pagam impostos, não pagam água, não pagam luz, não pagam nada disso. A casa está ali fechada e não faz mal nenhum. Por isso é que digo que nesta lei deveria ter sido resolvido esse problema. Requisitaram-se as casas, não é nacionalizar, para as colocar ao serviço das pessoas. E se elas forem colocadas ao serviço das pessoas podem resolver o problema.
No ano passado falou em cerca de 600 mil famílias em risco de perder a habitação.
Sim.
Ainda estamos nestes patamares?
Se calhar, agora estamos num patamar muito maior. Quando falei em 600 mil era a totalidade das famílias com rendas, não era apenas o rol das rendas anteriores a 1990 porque essas, neste momento, devem ser cerca de 150 mil ou já nem chegam a isso. Segundo os censos de 2011, existiam 733 mil contratos de arrendamento a nível nacional e, deste total, diria que 600 mil podem estar em perigo. Hoje, a situação não é diferente porque hoje está pior. A questão que se coloca hoje é que uma pessoa tem uma casa arrendada, chega ao final do contrato e o proprietário, se não quiser, diz que não quer e o contrato não continua. E mesmo que o inquilino não queira sair, o senhorio diz que em vez de cobrar 500 euros passa a cobrar mil. E se a pessoa não quiser pagar mil, então vai para a rua e tudo isto está previsto na lei. Por isso é que queremos alterar essa lei, dizendo que os contratos devem ser renovados e que o aumento deve ser feito com base na inflação. Não se pode despejar as pessoas por dá cá aquela palha ou porque o senhorio não gosta delas. Se é uma pessoa que pagou sempre a renda, não tem nenhum problema, então por que razão não pode continuar? Não estou contra a propriedade privada nem contra os senhorios, mas não posso concordar que os senhorios não façam obras, despejem as pessoas, façam bullying, contratem capangas para ameaçar as pessoas ou ofereçam 10 mil, 20 mil ou 30 mil euros a um casal velhote, que nunca viu esse dinheiro, que aceita esse valor e depois fica sem casa e sem dinheiro. Nunca fomos a favor das transmissões, pois a solução não era a casa passar para os filhos, netos, etc. Aliás, a partir de 2006, a lei veio dizer que não havia transmissões e que estas só passavam para os filhos até aos 26 anos. E isso estamos de acordo, porque não fazia sentido um casal morrer e o filho ou o neto que moravam lá ficarem com a casa.
Houve uma altura em que se falava diariamente sobre despejos. Deixou de ser um tema?
O problema é que saíram duas ou três leis e os proprietários também perceberam que estar a despejar as pessoas de qualquer maneira era complicado. A nossa associação defende que as pessoas não podem ser despejadas assim. E depois houve municípios que têm vindo a defender os inquilinos. Como a lei sofreu algumas alterações que acabaram por dar mais alguns direitos aos inquilinos, essa questão não é tão falada. O que é mais falado agora é o valor das rendas.
A criação de quotas no alojamento local em algumas freguesias, como em Santa Maria Maior, veio resolver algum problema?
Se o alojamento local for feito em casas desocupadas, e com isso não houvesse necessidade de fazer despejos, não tínhamos nada contra. Se a casa está desocupada, o senhorio não consegue arrendar e transforma aquilo em alojamento local, vai ganhar mais porque paga menos impostos, tem um valor superior ao valor mensal de uma renda normal. Se arrendar a 40 ou 50 euros por dia são mil e muitos euros por mês. Com isso, estamos de acordo. O que não podem é despejar pessoas para transformarem a habitação em alojamento local. Aí, a Câmara de Lisboa e as juntas de freguesia têm um papel determinante que é meter um travão nisto e, por isso, estou de acordo que haja algumas limitações para a atribuição de novas licenças.