A questão de fundo é, pois, a de saber se queremos ou não insistir na ideia ficcionada de magistrados absolutamente neutrais perante a vida da sociedade e as suas opções políticas.
Um artigo recente de João Miguel Tavares sobre a possibilidade de juízes – e suponho que também procuradores – poderem desempenhar cargos governamentais veio levantar uma questão que, em rigor, não se cinge a essa limitada e, pelos vistos, polémica possibilidade.
É verdade que, pelo menos desde que vivemos em democracia, alguns ministros e secretários de Estado provieram dos quadros destacados das magistraturas.
Tal origem não lhes assegurava necessariamente – nem, na verdade, podia assegurar – uma imagem ou reputação de maior qualidade e isenção política, embora a perspetiva dessa possibilidade possa ter sido, de facto, o motivo de quem os convidou para tais cargos.
A verdade, porém, é que, em tais casos, a qualidade pessoal e profissional de tais juízes e procuradores resultava já evidente das funções por eles anteriormente desempenhadas e das opiniões e propostas que, ao longo da sua vida – como magistrados, mas também como simples cidadãos com opiniões –, foram expressando publicamente.
Aí, sim, a verdadeira razão da sua escolha.
Em países como a Alemanha, por exemplo, nem sequer é hoje vedado aos juízes e procuradores a participação ativa no exercício político e partidário.
Depois da II Guerra Mundial, o constituinte alemão entendeu que a ideia de magistrados quimicamente puros, para além de não ser real, tinha conduzido, durante o regime nazi, ao aproveitamento da aparente e ficcionada neutralidade positivista de muitos magistrados para judicializar e assim mascarar a sua política genocida.
O que a nova Alemanha pretendeu, ao devolver aos magistrados a possibilidade de se exprimirem livremente, foi exatamente que eles pudessem participar, transparente e responsavelmente, como qualquer outra pessoa, na vida cívica, permitindo, além do mais, aos cidadãos controlar a concreta objetividade e isenção de cada uma das suas decisões judiciais.
O legislador democrático português optou, prudentemente, e tendo em atenção a nossa herdada cultura (anti)política, por proibir apenas a participação pública em atividades de natureza partidária.
Por isso, os magistrados portugueses não podem concorrer a eleições para a Assembleia da República – dada, até agora, a necessária inclusão em listas partidárias –, mas é-lhes permitido exercer funções governamentais e até de Presidente da República.
A questão de fundo é, pois, a de saber se queremos ou não insistir na ideia ficcionada de magistrados absolutamente neutrais perante a vida da sociedade e as suas opções políticas – a maior parte das vezes traduzidas em leis que alguns logo se apressam a acusar de ideológicas – ou se, pelo contrário, privilegiamos a transparência das opções e filiações partidárias (mas não só), permitindo aos cidadãos (e aos seus advogados) um controlo assertivo sobre as verdadeiras razões das decisões judiciais que eles tomam em cada caso.
Tenho para mim – que nunca exerci nenhum cargo político e não tenho intenção de exercer, mas que não sou e nunca me considerei apolítico nem disso fiz gala – que o que mais importa é a transparência da vida cívica e das opções ideológicas, religiosas, esotéricas e associativas dos que exercem cargos públicos e de poder.
A ideia de “nós, puros e isentos, contra eles, amorais e imorais”, de “nós, o povo, e os nossos vingadores contra a casta dos políticos” – ideia que contamina e se expressa hoje, já sem censura, em alguns círculos das magistraturas –, para além de ser, essa sim, perigosa do ponto de vista da isenção que se exige da Justiça, é claramente, ela também, uma ideia política poderosa e militante.
Vencer os preconceitos salazarentos, hipócritas e, afinal, antidemocráticos da antipolítica que dominam a nossa cultura, deve, por isso, constituir uma luta que devemos travar quotidianamente dentro de nós mesmos e na vida pública.