E, de repente, a Alemanha descobriu a Síria


A política tem horror ao vazio. A política internacional nem sequer lhe dá espaço.


A guerra civil na Síria tem sido um cadinho para o fazer e refazer de alianças, cada vez mais improváveis. A Federação Russa regressou à piscina dos grandes em matéria de geopolítica, mostrando-se particularmente eficaz na defesa do Estado cliente gerido pela actual geração da família Assad. Deixou em plano subalterno o Irão e reforçou a relação com a Turquia de Erdogan, numa identidade de pensamento e acção entre líderes que defendem a política musculada, guiada por objectivos nacionalistas e sem contemporizações com desvios da cultura ocidental (a saber: democracia, separação de poderes, direitos humanos, protecção de minorias…).

A deriva da administração Trump em matéria de política externa parece conhecer apenas uma motivação: ganhar dentro de um ano um segundo mandato presidencial, retirando até lá o maior número possível de tropas americanas de locais cujos nomes são impronunciáveis e que a esmagadora maioria dos eleitores não consegue apontar no mapa-mundo. Esta semana, as contradições atingiram o paroxismo: sanções contra a Turquia, revogação das sanções contra a Turquia, o secretário de Estado Pompeo a considerar a possibilidade de uma acção militar americana contra Ancara (um aliado NATO…) e o secretário da Defesa Esper a tentar tranquilizar ontem os colegas, antes da Ministerial da NATO em Bruxelas, com declarações públicas de “we would not start a war with a NATO Ally”.

Na segunda-feira, Putin recebeu Erdogan em Sochi (a capital do novo império russo) e, em conferência de imprensa conjunta, anunciaram o patrulhamento russo da zona-tampão no norte da Síria entretanto ocupada pelos militares turcos, depois da saída das tropas dos EUA. Nesse mesmo dia, a ministra da Defesa alemã (eleita sucessora de Merkel pela CDU) anunciou ao mundo a necessidade de criação de uma zona internacional de segurança no norte da Síria (por oposição à ocupação unilateral turca). No mesmo dia, o MNE alemão (SPD) lamentou só ter sido informado desta proposta por SMS e um deputado do mesmo SPD classificou a iniciativa como Luftnummer (que se pode traduzir pelo idiomatismo “para inglês ver”). Na terça-feira, Turquia e Rússia manifestaram-se contra a proposta alemã, o que inviabiliza, como tem acontecido, qualquer possibilidade de o Conselho de Segurança da ONU se pronunciar. Na quinta-feira, os EUA consideraram, pela boca de Mark Esper, a proposta alemã um bom exemplo do que devem ser as iniciativas europeias em matéria de defesa, pelo que Berlim deveria enviar tropas para o terreno, já que os EUA não o farão.

Para a história pouco edificante deste conflito vale a pena recordar o borregar, em 2013, da iniciativa franco-americana de intervenção militar na Síria, quando Obama se arrependeu e deixou Hollande entregue a si próprio. Sem o amigo americano, Paris não chegou a fazer sair as tropas da caserna. A súbita apetência alemã por uma intervenção na Síria, não precedida de consultas com o Eliseu, não escapou à mordacidade gaulesa: “Les allemands se font une conscience à propos de la Syrie”, dizia-me ontem um ex-embaixador gaulês, bom conhecedor das limitações teutónicas em matéria de uso da força (mesmo que ao abrigo de um mandato do Conselho de Segurança – basta recordar a abstenção de Berlim na intervenção na Líbia).

Aqui chegados, é de aproveitar a boa vontade da MDN alemã para lidar com a necessidade objectiva de dar à União Europeia um papel no controlo das ameaças na fronteira externa. Assim que os folhetins do Brexit e da nomeação da nova Comissão Europeia o permitirem.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990