Restos mortais de Franco trasladados para longe das suas vítimas

Restos mortais de Franco trasladados para longe das suas vítimas


O Governo espanhol promete que o Vale dos Caídos vai tornar-se um “lugar diferente”. Foi construído à custa do trabalho de presos políticos e “pode ter mais republicanos que franquistas” lá enterrados. 


Até ontem, Espanha era o único país europeu com um ditador sepultado num mausoléu de Estado, visível a dezenas de quilómetros de distância. Depois de anos de batalha jurídica, o Governo espanhol conseguiu trasladar os restos mortais de Francisco Franco do Vale dos Caídos – onde estava sepultado junto de dezenas de milhares das suas vítimas – para o cemitério de Mingorrubio, em Madrid. A decisão “põe fim à afronta moral que é o enaltecimento da figura de um ditador num espaço público”, declarou o primeiro-ministro espanhol em funções, Pedro Sánchez.

“A Espanha de hoje é o oposto do que era”, assegurou o líder socialista. Enquanto isso, centenas de saudosistas do franquismo estavam à porta do cemitério à espera dos restos mortais do ditador, levados de helicóptero do Vale dos Caídos, para impedir distúrbios no trajeto. Os manifestantes, cobertos com as cores de Espanha, desdobraram-se em saudações fascistas, cânticos do hino franquista Cara ao Sol e gritos de “Viva Espanha; Viva Franco”. Uma repórter da Antena 3 Televisión foi insultada e agredida a murro por manifestantes, que tentaram agarrar as câmaras e gritaram “imprensa espanhola manipuladora”.

A família do ditador – que levou consigo uma bandeira da Espanha franquista – deixou críticas ao Executivo de Sánchez. “Hoje, o Governo consumou a profanação da sepultura do nosso avô Francisco Franco, com grave atropelo aos nossos direitos fundamentais”, lia-se num comunicado. Franco ficou sepultado ao lado da mulher, Carmen Polo. 

Recorde-se que no franquismo se registaram mais de cem mil desaparecidos, mortos e enterrados em valas comuns. E muitas famílias lutam ainda pelo direito à memória, no segundo país do mundo com mais valas comuns – é ultrapassado apenas pelo Camboja. 

Futuro “Dentro de alguns dias, quando o Vale [dos Caídos] voltar a abrir as suas portas, quem entrar vai encontrar um lugar diferente”, prometeu Sánchez. Ainda não se sabe o que se fará com o Vale dos Caídos, mas as propostas do PSOE vão desde fazer do complexo um cemitério civil até à construção de um Museu para a Memória.

Já o Partido Popular (PP) e o Vox querem deixar o monumento como está, enquanto alguns partidos independentistas bascos e catalães defendem a sua demolição, por estar demasiado conotado com a ditadura.

“Cara lavada” “O Vale dos Caídos foi construído por milhares de presos da ditadura, foram trasladados para lá mais de 30 mil corpos”, afirmou Sánchez. Importa recordar que no monumento “podem estar enterrados mais republicanos do que franquistas”, como disse ao El Mundo a historiadora Susana Sueiro. 

Quando começaram as obras, depois da ii Guerra Mundial, o regime precisava “de mostrar uma cara lavada aos Aliados”, explicou. Como tal, o franquismo decidiu enterrar as suas próprias vítimas no monumento, dedicado aos “caídos por Deus e pela pátria” – leia-se, os vencedores da Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Como seria de esperar, muitas das famílias das vítimas não estavam interessadas nisso. “A trasladação dos restos mortais realizou-se de forma massiva, sem identificação ou autorização dos familiares, muitas vezes à noite”, contou a historiadora. Um processo semelhante “ao dos mortos republicanos assassinados pelos nacionalistas e enterrados em valas comuns clandestinas” – aliás, várias famílias só descobriram recentemente que os seus entes queridos estavam no Vale dos Caídos.