Coluna. O Monstro foi para Lyon, zangado, pendurar as botas  que já pesavam

Coluna. O Monstro foi para Lyon, zangado, pendurar as botas que já pesavam


Foi a primeira grande ligação do Benfica ao Olympique de Lyon, hoje adversários na Liga dos Campeões. O capitão encarnado saiu dorido da Luz, mas não encontrou em Lyon o consolo que esperava.


Lyon: essa tão fantástica e tão bonita cidade de França, entalada entre as quatro margens de dois rios, o Ródano e o Saône, à sombra das colinas Fourvière, com a sua protetora Notre-Dame, e de Croix-Rousse. Foi em Lyon que Mário Coluna, o Monstro Sagrado do Benfica, acabado de sair de Lisboa desgostoso por já não ser considerado indispensável, ainda por cima pelo seu antigo colega José Augusto, que substituíra Otto Glória no posto de treinador, procurou ainda um resto de felicidade. Enganou-se. O Olympique, que o recebeu com o orgulho devido a um bicampeão da Europa, era pequeno demais para Coluna. Mesmo para um Coluna com 35 anos.

Estava pesado, quase gordo. No primeiro jogo que fez pelo Lyon, a imprensa não lhe perdoou a velhice: “Le milieu de terrain d’origine mozambicaine n’est plus la terreur qu’il était”. Não aterrorizava mais os adversários. A muitos, já nem sequer metia medo. Sobrava o respeito…

Mas, convenhamos, o Olympique tinha sido fundado há apenas 20 anos, contava com duas Taças de França como únicos troféus decentes para mostrar ao mundo e recebia de braços abertos e sorriso rasgado uma estrela de imensa grandeza. “Personne ne pouvait lui prendre le ballon”, ainda comentam os velhos adeptos que se sentam no Parc de La Cerisaie. Com Coluna tinha chegado o jugoslavo Ljubomir Mihaijlovic, do Partizan de Belgrado, um defesa impositivo, na tentativa de darem ao conjunto a experiência e a sabedoria perdidas com as saídas do avançado argentino Ángel Rambert e de André Guy, outro dos históricos do clube, que se deixou encantar pelo dinheiro oferecido pelo Rennes. A equipa ficava, desta forma, composta pelos guarda-redes Cheauvau e Conrath; pelos defesas Baeza, Raymond Domenech, que viria a ser selecionador francês no Mundial de 2006, afastando Portugal nas meias-finais, Lhomme, Mihaijlovic, Perrin, Prost, Ravanello e Valette; pelos médios Chiesa, Mário Coluna e Ravier; e pelos avançados Di Nallo, Felix, Guy e Bernard Lacombe, internacional francês durante várias épocas.

Dois golos O tempo é uma imposição que não se contraria. Coluna ainda tinha força, mas não era mais aquele médio-centro que percorria o campo em todo o comprimento e em toda a largura como um rapazito que dispara, alegre e despreocupado, apanhando açucenas pelo meio da gipsófila. Recuara mais no terreno, ficara mais longe da área contrária, junto à qual costumava disparar tiros certeiros e calibrados com a pontaria digna de um hussardo.

O Olympique de Lyon lutou sofregamente para atingir a primeira metade de uma prova que englobava 20 equipas. Acabaria em sétimo. Sofreria derrotas que doeram horrores, como as frente ao Marselha (1-4) e ao Metz (1-6). Atingiria a final da Taça de França, perdida para o Rennes (0-1). O treinador Aimé Mignot, que só tinha mais três anos do que Mário Coluna, percebeu que o Monstro já não suportaria uma época por inteiro. Tentou tirar dele as qualidades que ainda restavam intactas, sobretudo aquela feroz atitude de liderança que empolgava os companheiros e punha os adversários de pé atrás.

Coluna participou em apenas 19 jogos durante a época de 1970-71. Marcou dois golos, um ao Ajaccio e outro ao Red Star, de Paris. A época seguinte seria um desastre total. Nem sequer um jogo. A imprensa francesa acusava-o de ser arrogante, de não se sujeitar às regras impostas pelo treinador. Coluna retorquia: “Não tenho nada mais a provar. Todos conhecem a minha carreira”.

O Hot Club Jazz, na Place Carnot, tornou-se para Mário Coluna um lugar mais convidativo do que o campo de treinos do Lyon. Ainda por cima vivia num apartamento mesmo por cima do bar. E era um amante do jazz.

Não restam hoje dúvidas de que a experiência de Mário Coluna no Olympique de Lyon foi, ponhamos as coisas neste prisma, dispensável. Não lhe trouxe nem prestígio nem dinheiro. Pelo contrário, arranjou-lhe alguns críticos ferozes que esperavam dele o que, obviamente, já não podia dar.

Voltou a Portugal e ainda se arrastou mais um pouco, no Estrela de Portalegre, onde foi treinador-jogador, mas muito mais treinador do que jogador. Afinal, até o treinador Coluna percebia que o jogador Coluna deixara tudo em campo ao longo da sua maravilhosa carreira. Não precisava de se empobrecer daquela forma. Foi para Moçambique, onde nascera, ensinar o que sabia e tornar-se presidente da Federação Moçambicana. Falei várias vezes com ele in illo tempore sobre a sua curiosa e meio misteriosa aventura lionesa. Não lhe provocava palavras de orgulho. Fora apenas um momento. E uma espécie de vingança. “Quando saí do Benfica ainda era, de longe, o melhor jogador do meio-campo e da defesa. A equipa sem mim não funcionou da mesma forma”.

Apesar disso, os encarnados foram campeões. E mesmo longe, em França, jogando cada vez menos, Mário Coluna não terá deixado de se sentir feliz. Nunca escondeu que era em tons de vermelho que batia o seu coração. E assim foi até parar, no dia 25 de fevereiro de 2014, pouco depois de ter visto partir o seu amigo Eusébio. Em Lyon, o seu nome ainda surge por entre os grandes que vestiram a camisola do Olympique. Não foi Monstro Sagrado à toa…