Morreu o Jordão e dá vontade de perguntar como Nelson Rodrigues quando a mulher lhe anunciou o falecimento de Guimarães Rosa: “Morreu como, se estava vivo?”
É difícil não recordar Jordão vivo. Que digo eu? Vivíssimo. Inquieto sobre a relva, nervoso como as gazelas lá da sua Benguela natal, de repente um salto, uma corrida contra o tempo e contra os homens que o perseguiam.
É difícil escolher um momento de Jordão para pendurar como um quadro na parede branca da memória dos seus grandes jogos. Mas vou a 1972. Jordão tinha 20 anos. No dia 29 de fevereiro, o Benfica estava em Londres, no Craven Cottage, campo do Fulham, para um particular. Às tantas, os adeptos ingleses pensaram que tinham entrado na espiral da loucura. Eles que se limitavam a estar sentados numas bancadas frias do sudoeste de Londres, junto a Hammersmith, entalado entre Putney e Chelsea. Levantaram-se como que impulsionados por uma mola. A bola caíra do alto, no meio-campo; Jordão tocou de cabeça para Eusébio e este devolveu de cabeça para Jordão. Até aí, tudo normal. Mas, depois, o gesto repete-se. Uma e outra e outra vez. Eusébio e Jordão vão ultrapassando adversários com toques de cabeça sucessivos, percorrendo assim o espaço até à grande área. Basta! A bola sai da cabeça de Jordão para o pé direito de Eusébio e o remate de primeira é forte, indefensável e sublime.
Nunca se tinha visto um golo assim em Inglaterra.
Jordão tinha chegado à Luz no ano anterior. Havia tantos avançados na Luz que era o cabo dos trabalhos decidir quem jogava. Jimmy Hagan, o inglês que não fazia comentários, chegava a entrar em campo com Eusébio e Simões, Nené, Jordão, Vítor Baptista e Artur Jorge. Varriam os opositores a golos.
Tal como aconteceu com o Feyenoord, ainda tão recentemente campeão da Europa. Se era preciso escolher uma noite vibrante do Príncipe Negro, falemos daquela em que ele pegou fogo à Luz.
Destruidor! Em Roterdão, na primeira mão dos quartos-de-final da Taça dos Campeões Europeus, o Benfica perdera por 1-0. Rui Manuel Trindade Jordão saíra triste da Holanda. Logo no primeiro minuto surgira isolado frente a Eddy Treijtel, mas falhara o golo que já todos os benfiquistas comemoravam.
Agora, no dia 22 de março, preparava-se para entrar em campo e não voltar a errar. Seria um embate para grandes e ele tinha pressa em ser um dos maiores.
A Luz rebentava pelas costuras. O Benfica perdera Simões, que partira um braço na véspera. Ernst Happel, o austríaco que treinava o Feyenoord, não perdeu a hipótese de se lançar num guerra psicológica agressiva, apelidando o Benfica de equipa de província: “Não tem qualquer hipótese de se apurar!” Cedo falou.
Com Eusébio e Toni no meio-campo e Nené, Jordão e Artur Jorge na frente, a equipa comandada por Jimmy Hagan era uma máquina de fazer golos. À meia hora já o Benfica virara a eliminatória com golos de Nené e Jordão. Mas Van Hanegem fez o 2-1 a 15 minutos do fim, deixando o público da Luz em suspenso. Nené fez o 3-1 aos 81 minutos; Jordão, o 4-1 aos 87; e Nené, o 5-1 aos 89. Um massacre terrível que dobrou a soberba de Ernst Happel.
Ficariam esses 15 minutos derradeiros como os Quinze Minutos à Benfica. Ficaria Jordão apegado ao epíteto de sucessor de Eusébio, injusto para um e para outro, porque o futebol tem reis e príncipes, mas não é uma monarquia. Prodigioso, relampejante, um negrito que só tem olhos para a divindade que lhe concede tal graça: tudo palavras escritas e publicadas. Jordão teria tantos e tantos momentos inesquecíveis. Chovia na Luz e ele brilhava. Soberbo e negro. Divino negro.