Carlos e Marisa. Uma história ainda sem um fim


Comeram uma refeição quente e levaram uma manta para passar a noite num jardim que há aqui perto. As suas vidas, a passada e a presente, cabem num saco ou dois.


Conheci o Carlos e a Marisa. (Por esta ordem). Um casal que ronda os 30 anos, com quem me cruzei durante vários dias até nos termos formalmente apresentado.

A primeira vez que os vi, estavam sentados nos degraus das escadas da entrada do meu prédio. Ao seu lado pousavam alguns sacos de plástico cheios e um carrinho de compras, semelhante ao que levo quando vou a pé ao mercado, fazer as compras da semana. Lembro-me de ter reparado neles e de ter pensado que poderiam estar a descansar a meio de um percurso entre o supermercado e a sua casa. Naquele momento, pareceram-me mais velhos, talvez por isso os tenha imaginado a descansar.

Voltei a revê-los passados uns dias, sentados no banco de madeira que está virado para a minha porta e onde, quase sempre, estão adolescentes e crianças a deliciarem-se com guloseimas que compram na mercearia global que está mesmo em frente. A gulodice é tanta que, mal saem da loja, se sentam naquele banco, em grupos, com pacotes coloridos que passam de mão em mão, como se estivessem a partilhar o último cigarro. Quanto ao Carlos e à Marisa, alternavam entre o banco e a minha entrada, à vista de todos os que por ali passam todos os dias e que, tal como eu, estranhavam a presença daqueles dois indivíduos sem rosto.

Num final de tarde, ao regressar a casa, perdida nos meus pensamentos e em tudo o que ainda me faltava fazer, começo a olhar para eles. Com olhos de ver. À medida que me aproximava da porta da entrada, atentei nos seus pertences – os tais sacos que me tinham parecido cheios de compras de supermercado; olhei de relance para os seus rostos e compreendi que não precisavam de descansar de uma ida ao supermercado, mas sim que a vida lhes desse umas tréguas para que as marcas sulcadas na pele suavizassem. 

Na minha cabeça e em poucos segundos, o quadro que tinha daquele casal alterou-se radicalmente e percebi a dura realidade que os assombrava. Ainda assim, subi os degraus, contornei os seus corpos em silêncio, abri a porta, olhei novamente para eles e ia prosseguir com o meu dia, a caminho do meu canto, onde tudo de bom acontece e o que é mau fica à porta; mas depois de os ter olhado nos olhos, já não consegui ignorar a sua presença.

Foi assim que conheci o Carlos e a Marisa, que até ao final de setembro viviam num quarto, pelo qual pagavam 350€, com a ajuda da Santa Casa da Misericórdia. O senhorio mandou-os embora porque queria receber mais dinheiro pelo mesmo quarto (não há julgamento nesta descrição, porque o mercado funciona assim e o senhorio também tem que ganhar o seu sustento). O Carlos trabalhava com técnico de limpeza num centro comercial e foi dispensado, e enquanto não for chamado para trabalhar, as dificuldades serão acrescidas. Continua à espera de receber um telefonema. A Marisa também não está a trabalhar: a falta de dentes no maxilar inferior é um obstáculo nas entrevistas de emprego. Em toda a conversa, sorria com os lábios apertados e deixava o Carlos responder ao interrogatório que eu ia fazendo, mesmo quando eu a interpelava diretamente. Não os quis inquirir; quis compreender como se chega até uma situação limite e ali se permanece. À medida que os ouvia só pensava como é tão fácil que isto possa acontecer a muitas pessoas desamparadas e sem rede familiar.

Naquele dia, comeram uma refeição quente e levaram uma manta para passar a noite num jardim que há aqui perto. Mas é pouco, muito pouco para a desgraça daqueles dias, sem horizonte à vista, a não ser um buraco negro sem fim, que vai sugando a energia, a esperança e a fé no que de bom pode acontecer.

Quando ouvimos histórias destas, podemos, enganadoramente, ser levados a pensar que há muito queixume e lamentação nas suas palavras, como se fossem uns coitadinhos. Mas não é bem assim; na verdade, é um reflexo daquilo que conhecem e que os mantém acorrentados naquele inferno. A falta de informação está relacionada com a ausência de oportunidades. Por exemplo, neste caso, dificilmente terão conhecimento de um quarto para arrendar, já que não têm acesso a sites imobiliários, jornais ou outros meios de divulgação. A sua maior preocupação é como encontrar uma forma de saberem onde haverá um quarto disponível pelo valor que podem pagar. O mundo destas pessoas é infinitamente pequeno quando comparado com o nosso, mesmo no que se refere ao mais básico e essencial do quotidiano. Geograficamente, é do tamanho do bairro onde dormem e guardam o que têm, à distância dos percursos que fazem a pé; socialmente, reduzem-se a um companheiro ou ao “vizinho” mais próximo que pode ser útil na guarda dos seus bens; as suas vidas, a passada e a presente, cabem num saco ou dois, no meio de materiais indispensáveis à sua sobrevivência (mantas, cartões para proteger do frio, comida, roupa).

Em Portugal desvalorizamos o voluntariado e as associações que têm como missão chegar até estas pessoas em dificuldades, facultando o acesso a bens essenciais como as refeições ou roupa. Outras vão mais longe e têm programas específicos, consoante as características dos problemas associados aos sem-abrigo, para capacitar estas pessoas, através de formações, com competências sociais e profissionais, de forma a poderem reconstruir o seu futuro. Mas é um trabalho inglório e pouco reconhecido pela sociedade, em geral, e pelo Estado e partidos políticos da esquerda, nomeadamente o Bloco de Esquerda, em concreto.

Somos o terceiro país europeu com o índice mais baixo de voluntariado, só ficando a Roménia e a Bulgária atrás de nós. O que não faz sentido, tendo em conta a nossa matriz católica, responsável pela alocação de inúmeras estruturas de apoio social por esse país fora, promovendo a consciência desta necessidade junto das comunidades. O exemplo que veio da Igreja Católica, no que diz respeito a Portugal, foi seguido por cidadãos que constituíram associações de apoio social, que mais tarde derivaram para instituições particulares de solidariedade social sem finalidade lucrativa, sem quaisquer recursos ou ajudas financeiras que não as de particulares ou de empresas privadas, e que muito têm ajudado os mais desfavorecidos, onde o Estado não consegue chegar.

O valor do trabalho dos voluntários é medido através das horas que disponibilizam para ajudar nas causas que escolhem participar e já vale mais de 870 milhões de euros por ano, correspondendo entre 0,4% e 0,8% do PIB.

Somos poucos para o tanto que ainda há a fazer e para ajudarmos as Marisas e os Carlos desta vida, que não esperando nada de ninguém, nem sequer exigindo os direitos e garantias básicos, continuam transparentes para muitos de nós. Apesar de tudo o que por aí se vai dizendo, escrevendo e mostrando, enquanto não forem notícia, estes cidadãos não existem, porque não estão no radar do espetáculo.

 

Escreve quinzenalmente

Carlos e Marisa. Uma história ainda sem um fim


Comeram uma refeição quente e levaram uma manta para passar a noite num jardim que há aqui perto. As suas vidas, a passada e a presente, cabem num saco ou dois.


Conheci o Carlos e a Marisa. (Por esta ordem). Um casal que ronda os 30 anos, com quem me cruzei durante vários dias até nos termos formalmente apresentado.

A primeira vez que os vi, estavam sentados nos degraus das escadas da entrada do meu prédio. Ao seu lado pousavam alguns sacos de plástico cheios e um carrinho de compras, semelhante ao que levo quando vou a pé ao mercado, fazer as compras da semana. Lembro-me de ter reparado neles e de ter pensado que poderiam estar a descansar a meio de um percurso entre o supermercado e a sua casa. Naquele momento, pareceram-me mais velhos, talvez por isso os tenha imaginado a descansar.

Voltei a revê-los passados uns dias, sentados no banco de madeira que está virado para a minha porta e onde, quase sempre, estão adolescentes e crianças a deliciarem-se com guloseimas que compram na mercearia global que está mesmo em frente. A gulodice é tanta que, mal saem da loja, se sentam naquele banco, em grupos, com pacotes coloridos que passam de mão em mão, como se estivessem a partilhar o último cigarro. Quanto ao Carlos e à Marisa, alternavam entre o banco e a minha entrada, à vista de todos os que por ali passam todos os dias e que, tal como eu, estranhavam a presença daqueles dois indivíduos sem rosto.

Num final de tarde, ao regressar a casa, perdida nos meus pensamentos e em tudo o que ainda me faltava fazer, começo a olhar para eles. Com olhos de ver. À medida que me aproximava da porta da entrada, atentei nos seus pertences – os tais sacos que me tinham parecido cheios de compras de supermercado; olhei de relance para os seus rostos e compreendi que não precisavam de descansar de uma ida ao supermercado, mas sim que a vida lhes desse umas tréguas para que as marcas sulcadas na pele suavizassem. 

Na minha cabeça e em poucos segundos, o quadro que tinha daquele casal alterou-se radicalmente e percebi a dura realidade que os assombrava. Ainda assim, subi os degraus, contornei os seus corpos em silêncio, abri a porta, olhei novamente para eles e ia prosseguir com o meu dia, a caminho do meu canto, onde tudo de bom acontece e o que é mau fica à porta; mas depois de os ter olhado nos olhos, já não consegui ignorar a sua presença.

Foi assim que conheci o Carlos e a Marisa, que até ao final de setembro viviam num quarto, pelo qual pagavam 350€, com a ajuda da Santa Casa da Misericórdia. O senhorio mandou-os embora porque queria receber mais dinheiro pelo mesmo quarto (não há julgamento nesta descrição, porque o mercado funciona assim e o senhorio também tem que ganhar o seu sustento). O Carlos trabalhava com técnico de limpeza num centro comercial e foi dispensado, e enquanto não for chamado para trabalhar, as dificuldades serão acrescidas. Continua à espera de receber um telefonema. A Marisa também não está a trabalhar: a falta de dentes no maxilar inferior é um obstáculo nas entrevistas de emprego. Em toda a conversa, sorria com os lábios apertados e deixava o Carlos responder ao interrogatório que eu ia fazendo, mesmo quando eu a interpelava diretamente. Não os quis inquirir; quis compreender como se chega até uma situação limite e ali se permanece. À medida que os ouvia só pensava como é tão fácil que isto possa acontecer a muitas pessoas desamparadas e sem rede familiar.

Naquele dia, comeram uma refeição quente e levaram uma manta para passar a noite num jardim que há aqui perto. Mas é pouco, muito pouco para a desgraça daqueles dias, sem horizonte à vista, a não ser um buraco negro sem fim, que vai sugando a energia, a esperança e a fé no que de bom pode acontecer.

Quando ouvimos histórias destas, podemos, enganadoramente, ser levados a pensar que há muito queixume e lamentação nas suas palavras, como se fossem uns coitadinhos. Mas não é bem assim; na verdade, é um reflexo daquilo que conhecem e que os mantém acorrentados naquele inferno. A falta de informação está relacionada com a ausência de oportunidades. Por exemplo, neste caso, dificilmente terão conhecimento de um quarto para arrendar, já que não têm acesso a sites imobiliários, jornais ou outros meios de divulgação. A sua maior preocupação é como encontrar uma forma de saberem onde haverá um quarto disponível pelo valor que podem pagar. O mundo destas pessoas é infinitamente pequeno quando comparado com o nosso, mesmo no que se refere ao mais básico e essencial do quotidiano. Geograficamente, é do tamanho do bairro onde dormem e guardam o que têm, à distância dos percursos que fazem a pé; socialmente, reduzem-se a um companheiro ou ao “vizinho” mais próximo que pode ser útil na guarda dos seus bens; as suas vidas, a passada e a presente, cabem num saco ou dois, no meio de materiais indispensáveis à sua sobrevivência (mantas, cartões para proteger do frio, comida, roupa).

Em Portugal desvalorizamos o voluntariado e as associações que têm como missão chegar até estas pessoas em dificuldades, facultando o acesso a bens essenciais como as refeições ou roupa. Outras vão mais longe e têm programas específicos, consoante as características dos problemas associados aos sem-abrigo, para capacitar estas pessoas, através de formações, com competências sociais e profissionais, de forma a poderem reconstruir o seu futuro. Mas é um trabalho inglório e pouco reconhecido pela sociedade, em geral, e pelo Estado e partidos políticos da esquerda, nomeadamente o Bloco de Esquerda, em concreto.

Somos o terceiro país europeu com o índice mais baixo de voluntariado, só ficando a Roménia e a Bulgária atrás de nós. O que não faz sentido, tendo em conta a nossa matriz católica, responsável pela alocação de inúmeras estruturas de apoio social por esse país fora, promovendo a consciência desta necessidade junto das comunidades. O exemplo que veio da Igreja Católica, no que diz respeito a Portugal, foi seguido por cidadãos que constituíram associações de apoio social, que mais tarde derivaram para instituições particulares de solidariedade social sem finalidade lucrativa, sem quaisquer recursos ou ajudas financeiras que não as de particulares ou de empresas privadas, e que muito têm ajudado os mais desfavorecidos, onde o Estado não consegue chegar.

O valor do trabalho dos voluntários é medido através das horas que disponibilizam para ajudar nas causas que escolhem participar e já vale mais de 870 milhões de euros por ano, correspondendo entre 0,4% e 0,8% do PIB.

Somos poucos para o tanto que ainda há a fazer e para ajudarmos as Marisas e os Carlos desta vida, que não esperando nada de ninguém, nem sequer exigindo os direitos e garantias básicos, continuam transparentes para muitos de nós. Apesar de tudo o que por aí se vai dizendo, escrevendo e mostrando, enquanto não forem notícia, estes cidadãos não existem, porque não estão no radar do espetáculo.

 

Escreve quinzenalmente