O fim da URSS deixou os EUA como superpotência única, guardando Moscovo o arsenal nuclear estratégico. O poder económico, político, militar e geoestratégico parecia ter desaparecido com a URSS. O objectivo único de Vladimir Putin e da sua geração de bons e leais funcionários foi o de recuperar os diversos segmentos do poder. A guerra na Geórgia serviu para mostrar o enorme atraso tecnológico das forças armadas russas. A anexação da Crimeia não foi propriamente um feito militar. A guerra civil promovida por Moscovo no leste da Ucrânia evoluirá, no melhor dos casos, para um conflito congelado. Nenhum destes três episódios marcou o regresso de Moscovo ao exercício do poder à escala global. Foram “arruaças” nas fronteiras, muito perto do território nacional e em defesa dos membros da etnia russa.
Para lá da fronteira nacional, a Federação Russa não tinha conseguido recuperar o músculo geoestratégico dos saudosos tempos da Guerra Fria. O apoio à Venezuela bolivariana foi simbólico e incapaz de alterar a correlação de forças no terreno. As tentativas de recuperar uma armada oceânica de superfície continuam sem dar resultados, com episódios caricatos e humilhantes na comparação com a marinha dos EUA. O braggadocio de Putin, com repetidos anúncios de armas-maravilha capazes de destruir qualquer inimigo, soa a um remake de mau gosto das Wunderwaffen dos estertores do iii Reich.
Não obstante estes fracassos, a Rússia foi capaz de readquirir uma importância geoestratégica de que não gozava há mais de 30 anos. O mérito de um jogador depende sempre do mérito relativo do adversário. E a administração Trump tem sido um adversário incapaz. A partir do momento em que tomou forma a suspeita de manipulação, pelos serviços de informação russos, das eleições presidenciais americanas de 2016, a legitimidade do líder da hiperpotência está colocada em crise.
A deriva de Trump em matéria de política internacional alienou a confiança que aliados e parceiros depositavam nos EUA. A colocação em crise de alianças tradicionais (Japão, Coreia do Sul, NATO, UE…) já seria dramática. Pior é a substituição dos EUA pela Rússia nalguns dos eixos geopolíticos, a começar pelo Médio Oriente.
Ao abandonar os curdos à sua sorte depois de os ter utilizado para combater eficazmente o Estado Islâmico, Trump lançou o pânico em todas as capitais da região, a começar pelas que lhe são mais próximas: Riade e Telavive. Putin fez esta semana uma visita de Estado à Arábia Saudita, manteve o diálogo com Netanyahu (para evitar conflitos entre as respectivas forças armadas na e em torno da Síria) e tem sido o interlocutor de Erdogan, a quem vende equipamento militar sofisticado. De caminho, as forças expedicionárias russas na Síria (que incluem os mercenários do Grupo Wagner, cujas baixas são politicamente mais fáceis de suportar) substituíram os militares dos EUA, assegurando a interposição entre turcos, em processo de ocupação do norte da Síria, e curdos.
Aliados e parceiros de Washington olham para Trump e desesperam com a imprevisibilidade da sua política externa. O contraponto com a solidariedade sem falhas de Putin em relação ao regime de Bashar al-Assad (o que lhe tem permitido a sobrevivência política) devolveu a Moscovo um papel principal na geopolítica à escala planetária.
A internacionalização da guerra civil síria acontece perto da fronteira externa da UE, tornando evidente a irrelevância de Bruxelas, mera destinatária das ameaças de Erdogan em matéria de fluxos migratórios.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990