Billy não andava satisfeito com ele próprio. Vendo bem, era um trapalhão. Como se costuma dizer no futebol, não lhe dava nem de bico. Nunca o chamavam para as peladas da escola e o seu sonho de entrar no Amhurst Albion, clube local, não passava de um devaneio. Uma tarde, entregue à tarefa de limpar o sótão de casa da avó, com a qual vivia, encontrou um velho par de chuteiras. O avô comprara-as numa feira, por brincadeira: tinham pertencido a um jogador famoso umas décadas antes, um avançado-centro chamado Charles “Dead Shot” Keen. O homem não ganhara a alcunha por dá cá aquela palha. Tinha um remate assassino. Bobby Robson, que foi treinador da seleção inglesa e, cá em Portugal, do Sporting e do FC Porto, disse uma vez: “Even now after all these years when I look at a forward I see how he matches up to the best when I was a boy and that was Dead Shot”.
Keen existiu mesmo? Se existiu, nunca foi muito ambicioso. Nascido em Amhurst, Northamptonshire, recusou convites de clubes mais endinheirados. Sofria de um sopro no coração e gostava de se manter junto da família. Quando Billy calçou as botas de Dead Shot, percebeu que os seus sonhos se iriam tornar realidade. De um momento para o outro começou a marcar golos a torto e a direito. Os seus pontapés fulminantes conduziram-no ao lugar de estrela da rapaziada das redondezas e ao convite para vestir a camisola do Amhurst Albion.
A Tiger foi uma revista juvenil publicada na Grã-Bretanha entre 1954 e 1985. De designação completa era Tiger – The Sport and Adventure Picture Story Weekly. Trazia histórias aos quadradinhos e o seu editor, Derek Birnage, gostava que elas tivessem o futebol como tema. Uma das mais populares surgiu em 1954: Roy of the Rovers. Contava as peripécias de Roy Race e do seu companheiro Blackie Gray, dois adolescentes que lutavam por arranjar um lugar na equipa do Melchester Rovers. Roy teria um futuro tão brilhante que até meteu a conquista de três Taça dos Campeões Europeus.
Billy foi mais modesto. A sua versão inicial, idealizada por Frank Purcell, também surgiu na Tiger, entre 1961 e 1963. Nem Birnage, que pelo caminho viria a perder Roy, cuja importância deu direito a uma revista com o seu próprio nome, permitiria o contrário. Nos anos 70, a Tiger fundiu-se com outras duas publicações, a Scorcher (dedicada exclusivamente a histórias sobre futebol) e a Eagle. Nessa altura, já Billy’s Boots tinha os textos escritos por Fred Baker e os desenhos assinados por John Gillat que não tardaria a ser substituído pelo bem mais substancial Mike Western.
O drama! A miudagem revia-se em Billy. E revia-se na sua preocupação em manter as botas de Charles “Dead Shot” Keen utilizáveis sob o risco de, sem elas, de um dia para o outro, perder a magia do futebol que encantava toda a gente. Ora, aí estava o centro da narrativa. Mesmo a pedi-las, convenhamos. A vida de Billy, no geral tão pouco interessante como a de qualquer fedelho obrigado a fazer, volta e meia, umas tarefas para a avó, revolvia-se num dramalhão digno de Laurence Leamer sempre que perdia ou lhe roubavam as botas, algo que passou a suceder frequentemente. O assunto tornou-se de tal forma obsessivo para o jovem que, numa deslocação a França, com a equipa do colégio, resolveu levar as suas chuteiras rasgadas a um sapateiro que as reconheceu e lhe revelou que tinha fabricado um par delas para o saudoso Dead Shot. Nem Billy quis ouvir mais uma palavra. Tratou de encomendar umas novas em folha, certo de que a arte dos golos nascera das mãos do sapateiro e, dessa forma, iria garantir calçado e pontapés certeiros até ao fim da sua carreira. Puro engano! Quando entrou em campo, orgulhoso do seu par de chuteiras a estrear, percebeu que toda a sua natural trapalhice regressara com a fúria habitual e terminou com uma saída pouco airosa sob a assobiadela geral dos espetadores.
A filosofia da banda desenhada inventada por Frank Purcell baseava-se na simples pergunta que Billy fez a si próprio no dia em que calçou as botas encantadas: “Is this me, or is this ‘Dead-Shot’ Keen?” Vamos e venhamos: tão digno de Shakespeare como o “To be or not to be”.
Billy’s Boots seria traduzido para dezenas de línguas e apareceu em português como Billy o Botas, o que não batia muito certo com a ideia original. Bem à inglesa, Billy encontraria, mais tarde, uns sapatos de cricket que fizeram dele um ás da modalidade. Sempre com 13 anos de idade, embora as suas aventuras se tenham prolongado por mais de duas décadas. Nisso foi como Peter-Pan. Nunca cresceu.