A evidente falência do modelo de Organização do Poder Político consagrada na actual Constituição da República Portuguesa de 1976 obrigará a que, mais cedo ou mais tarde, tenhamos de ser chamados a eleger democraticamente em eleições legislativas uma nova Assembleia Constituinte. Mas, diferentemente do que ocorreu no dia 25 de Abril de 1975 do século passado em que as pessoas votaram nos partidos políticos que compuseram a Constituinte sem que tivessem sido, verdadeiramente, apresentados e discutidos quaisquer modelos de Estado em concreto que fossem defendidos por cada partido político. Era o tempo em que o que estava em cima da mesa eram as grandes linhas orientadoras de género de sociedade que se pretendia adoptar e fazer erguer no Portugal político emergente do golpe militar de 1974. Um povo pouco esclarecido mas absolutamente ávido de liberdade, ansioso de modernismo e sedento de contemporaneidade que só o desenvolvimento pode garantir e que não existiu de todo nos últimos vinte anos e uma guerra colonial devastadora que fizeram envelhecer gritantemente o regime do Estado Novo ao ponto de ter ruído de forma tão impressionante numa só madrugada…
Nessas eleições, aliás as primeiras realizadas livremente em Portugal, com uma taxa de participação de 90% dos eleitores, apenas se votaram e em abstracto as duas únicas vias possíveis. Por um lado, a via da democracia representativa de tipo ocidental preconizada pelos partidos democráticos PS, PPD/PSD e CDS e por outro, a via totalitária dos vários modelos socialistas e comunistas preconizada pelo PCP e seu partido satélite MDP/CDE, UDP (uma parte do actual BE) e toda a restante extrema-esquerda, não tendo outro remédio se não sujeitarem-se ao jogo democrático após terem perdido definitivamente qualquer hipótese de se levar por diante a terceira via (militar) com a qual estavam profundamente comprometidos.
Desta vez o processo constituinte, quando ocorrer, será obrigatoriamente distinto do anterior. Até porque somos hoje, apesar de tudo, uma democracia formalmente consolidada, não estando em causa uma ruptura total com a constituição actual que rege a III República. Está sim em crise, a sua terceira parte que determina os Órgãos de Soberania, a Forma de Governo e toda a organização e administração do Estado, sendo por isso razão para se entender tal reforma não apenas como uma simples revisão, mas sim, como uma nova e moderna constituição democrática feita neste e para este século XXI e que marcará o início de uma República 4.0, cujas novas instituições democráticas sustentem sem ambiguidades e cumpram sem desconfianças o próprio Estado de Direito merecedor de respeito e credibilização devidos.
Pelo que, uma tal reforma dessa envergadura, necessitará de uma eleição popular para o efeito, depois de feito com o tempo necessário o debate com toda a sociedade portuguesa, envolvendo o fundamental contributo da doutrina do Direito e da Ciência Política, como as demais áreas do conhecimento académico, em especial das Ciências Sociais. Esse grande debate que deve ter por objectivo pensar a República numa lógica de refundação quanto à forma de organização do poder político e da divisão administrativa do território nacional que queremos para o presente e para o futuro de Portugal, onde o espectro político-partidário apresente de forma clara e inequívoca aos portugueses todas as suas propostas constitucionais.
Terão assim, todos os partidos políticos actuais e vindouros a oportunidade de dizer às pessoas que país é que querem. Que modelos de regime preconizam, por forma, a que as pessoas possam então votar de acordo com as propostas concretas para uma nova organização do poder político nacional com as quais mais se identificarem, dizendo também que país é que efectivamente querem para os próximos 50 anos.
No final desse novo processo constituinte – após aprovação na Assembleia da República – deverá o texto constitucional ser referendado pelo soberano Povo Português, coisa que, de resto, não ocorreu em 1976.
Um dos poderes políticos que, a meu ver, terá forçosamente de ser completamente repensado e reorganizado é o poder local.
Considerado por muitos, a par das regiões autónomas, como a grande obra constitucional do regime, creio, muito sinceramente, estar totalmente obsoleto, por desfasado da realidade. Designadamente, quanto à divisão administrativa do território que determina o número de concelhos e, consequentemente, a quantidade de câmaras municipais e juntas de freguesia (estas últimas, alvo de pequenas alterações coercivas no sentido correcto, mas por força de imposições externas decorrentes da última bancarrota a que fomos submetidos).
Durante estes 44 anos do regime constitucional, o paradigma do poder político local foi consubstanciado na ideia de proximidade democrática entre os eleitores e os eleitos. Porém, rapidamente os partidos políticos que se organizaram e implantaram em todo o território nacional cedo perceberam as óbvias “potencialidades” deste sistema na vida e carreira de um pequeno político que assim se faz grande… Como diria António Variações “Quando a cabeça (política) está convencida que a autarquia é uma maravilha, o corpo (povo) é que paga…”
Não querendo generalizar negativamente nem tão pouco diminuir o trabalho autárquico realizado, digo é que a lógica que fundamenta e sustenta o paradigma da proximidade é o “dividir para reinar”. Dividir quanto mais possível o território, criando-se artificialmente novos concelhos através da “emancipação” de freguesias que, em virtude de vários factores, com especial destaque para o crescimento populacional e uma base legal administrativa ridícula, começaram a levantar a voz até conseguirem dar “o grito do Ipiranga” como ocorreu por diversas vezes, estando ainda presente na minha memória as últimas tentativas dessas gritarias absurdas que tiveram lugar no final dos anos 90 do século passado… Claro que, sempre que se proporcionam essas deliciosas circunstâncias, são os próprios protocandidatos à liderança dos novos concelhos os instigadores dos sentimentos primários que se apoderam das populações que “anseiam” pelo dia da “independência” em que tudo passará a ser diferente do passado e em que a vida dessas pessoas melhora significativamente…
Eis o princípio fundador do caciquismo. No caso, pequeno caciquismo mas que um dia maior será e de repente será grande. Enorme como Puigdemont e a sua Catalunya que tem de ser independente para que o senhor possa ser o seu Presidente, mesmo que isso conduza o povo a uma guerra civil!
Não fosse isto já mau que chegue, a verdade é que estas divisões administrativas não trouxeram nem trazem qualquer melhoria do que quer que seja na vida dos cidadãos e munícipes, apesar de ser essa a lenga-lenga justificativa. Serviram, isso sim, para aumentar e muito os cargos políticos electivos a distribuir pelos respectivos e únicos interessados partidos políticos e os seus dirigentes locais. Ou seja, para “reinar”, mesmo que, à custa de um orçamento monstruoso do Estado que vive de forma insuportável à conta dos impostos dos cidadãos que não chegam para travar o endividamento contínuo e perpétuo.
A actual divisão administrativa do território com 308 municípios (278 no continente, 11 na Madeira e 19 nos Açores) enfraquece objectivamente toda uma parte considerável do território nacional, como disso é prova o fracasso absoluto no aparecimento, desenvolvimento e afirmação de novas áreas metropolitanas para além das mesmíssimas duas que sempre existiram desde a Monarquia Constitucional e o continuado êxodo populacional de inúmeras regiões deste país onde fechar um tribunal, uma escola, um centro de saúde ou até mesmo uma estação dos CTT é muito mais prejudicial ao cidadão do que manter uma câmara municipal autónoma.
Nas duas principais cidades e centros urbanos de Lisboa e Porto, é fundamental acabar com a quantidade de concelhos circundantes bloqueadores do crescimento normal que essas cidades têm de fazer, acompanhando o que se fez e faz noutros países europeus. Isto é, transformar parte das respectivas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto em autarquias únicas, à semelhança do que existe em Londres e que Paris está há anos a pretender replicar.
Que sentido fazem os concelhos autónomos da Amadora, Odivelas e Almada? É tudo Lisboa! Na mesma medida que sentido fazem os concelhos autónomos de Matosinhos, Gondomar e Vila Nova de Gaia? É tudo Porto!
É tempo de mudar o paradigma para algo racional e benéfico, não apenas para o Estado na sua globalidade que pura e simplesmente não tem meios financeiros para manter tudo tal como está, mas principalmente para as próprias regiões e concelhos em causa e seus respectivos munícipes residentes. Juntar para fortalecer deve ser a ideia-chave. Diminuir para sensivelmente metade o número de autarquias locais que temos hoje é uma questão de razoabilidade sustentável.
Não precisamos, nos novos anos 20 que aí estão achegar, de ter em Portugal uma administração local com 308 concelhos para se dar resposta às necessidades dos cidadãos. É inútil, é absurdo, é caro e não serve a outro fim que não o de alimentar as agências de emprego em que se tornaram (também) os partidos políticos do regime. Por outro lado, uma fusão territorial entre concelhos potenciará cada uma dessas regiões em todos os níveis económicos e sociais. Sendo evidentes os ganhos que se retirarão de uma gestão autárquica sustentável. Desde logo na carga fiscal contributiva. Mesmo que aumentando os executivos camarários com mais vereadores por força do aumento populacional fruto dessas fusões territoriais, será sempre melhor do que aquilo que temos actualmente.
Um Presidente em vez de dois ou três, um carro de serviço e respectivo motorista em vez de dois ou três, uma ajuda de custo em vez de duas ou três, uma empresa municipal em vez de duas ou três a multiplicar pelos respectivos corpos dirigentes e assim sucessivamente.
Jurista.