Merckx e Poulidor. E quando as palavras  se calam, as cicatrizes falam…

Merckx e Poulidor. E quando as palavras se calam, as cicatrizes falam…


Um caiu da bicicleta, o outro caiu da cadeira da saúde com um problema de coração. Pedalam ambos lado a lado, outra vez como há 40 anos, agora nas camas de hospital, lutando para continuarem a cruzar a meta da vida.


Aos 74 anos, Eddy Merckx, o Canibal, já não pedala com a firmeza de outrora. Está internado no Hospital de Dendermonde, nos arredores de Bruxelas, e causa preocupações por via dos vários ferimentos que sofreu na cabeça. Ia montado numa daquelas bicicletas que têm o seu nome quando se desequilibrou e caiu. A queda foi feia. Não tão feia como as do Alpe d’Huez, na Volta a França, mas isso é assunto que já tem 40 anos. Foi no domingo passado. Os médicos ainda não revelaram quando lhe será dada alta. Nada como ter cuidado com os resultados dos TAC feitos a Édouard Louis Joseph Merckx, o septuagenário.

Um dos velhos adversários de Eddy Merckx nas grandes provas do ciclismo internacional, Raymond Poulidor, com 83 anos, está igualmente hospitalizado e não se sabe quando poderá vir a abandonar a sua cama da clínica de Saint-Léonard-de-Noblat, cidadezinha onde vive há mais de cinco décadas. Poulidor, o famoso Poupou, não caiu da bicicleta. Caiu da cadeira da saúde, digamos assim, envolvido em problemas cardíacos há muito tempo e sofrendo agora de uma fadiga persistente.

A sua mulher, Gisèle, pôs a França em alarme quando, numa entrevista ao Le Parisien, confessou: “Estou muito, muito preocupada com a saúde do Raymond. Os médicos que lhe têm feito testes dizem-nos para não esperarmos por boas notícias”.

Parece que exagerou. Os tais médicos acabariam por desmenti-la dois dias mais tarde, anunciando que Poulidor sentia melhorias evidentes e estava a recuperar com vontade. Nesta corrida final, nem Merckx nem Poupou quererão chegar primeiro.

Fantasmas Poulidor ganhou a desagradável alcunha de Eterno Segundo. Teve oito presenças no pódio da Volta à França e nenhuma delas no primeiro lugar. Agora espera que o neto, Mathieu van der Poel, venha a conseguir aquilo que o avô nunca alcançou.

Não sei se, nestes dias fechado entre paredes brancas de um quarto de hospital, Raymond vive rodeado de fantasmas. Só ele e os seus próximos poderão desfazer esse mistério. Sabe o velho Poupou que um dos seus grandes fantasmas, Jacques Anquetil, cinco vezes vencedor do Tour, partiu já para a planície da impossível saudade. Morreu em 1987, com apenas 53 anos. O outro dos seus fantasmas, também cinco vezes vencedor da Volta a França, Eddy Merckx, está deitado como ele, entre gente de batas claras e o cheiro inconfundível dos desinfetantes. Poulidor pode agradecer, se agradecer fosse a palavra correta, a Anquetil e Merckx nunca ter ido além da lenda. Sim, porque Raymond entrou definitivamente na lenda do ciclismo mundial, mesmo de costas voltadas para os triunfos mais excitantes. As grandes batalhas compreendem vencedores e vencidos. Leónidas, general de Esparta, foi o grande herói da Batalha das Termópilas a despeito de ter sido derrotado por Xerxes, imperador da Pérsia. Poulidor alinhou na fileira dos vencidos mas, por dentro, era um vencedor. Por isso, regressava sempre à linha de partida e voltava a lutar pela vitória sonhada que continuamente se desvaneceu.

O tempo não costuma ser justo com os homens e atribui-lhes fraquezas crescentes a cada ano que passa. Para nós, que nos recordamos de ver Eddy Merckx, Jacques Anquetil e Raymond Poulidor pedalarem lado a lado nas estradas de França, Itália ou Espanha, a queda das estrelas não nos enche os jardins da memória com a luz de pirilampos. Apaga-a.

Queixava-se aquela personagem de anedota na véspera de fazer 80 anos de que, se no dia seguinte fosse atropelado mortalmente, o título da breve de jornal já não traria o seu nome e se limitaria a anunciar o falecimento de um octogenário.

Merckx e Poulidor não vão morrer. Aliás, não vão morrer agora nem nunca, tão imortais se tornaram ao longo das suas vidas, e Camões bem sabia algumas coisas de como nos libertarmos da absurda lei da morte. Fechados em hospitais, o primeiro na Bélgica e o segundo em França, deveriam ter muito para conversar se os tivessem instalado em camas lado a lado.

Eddy Merckx já não pedala com a desfaçatez de sempre, pelos vistos, agora que uma simples queda, a juntar às tantas que sofreu, o atirou para o sacrifício dos testes médicos e da reclusão hospitalar. Poulidor nunca esquecerá o ano de 1973, em que viu Merckx vencer a Volta a França que ele ainda esperava poder ser sua. Na descida íngreme dos Pirenéus, em Col de Portet d’Aspet, foi cuspido do selim com uma violência inaudita e o crânio pareceu que lhe ia explodir quando tocou o pavimento. Conseguiu arrastar-se para a berma. Jacques Goddet, diretor do Tour, que vinha num automóvel atrás dele, levou-o para as urgências entre a vida e a morte. Poupou era de uma valentia notável. Aguentou-se com bravura.

Dizia-se que uma das razões para perder vezes demais era a de viver no mundo da lua, sempre distraído, envolto nos seus pensamentos. Ele próprio o confirmou: “Toda a vida era, para mim, maravilhosa. Queria sobretudo viver. Por isso não acordava de manhã com a obsessão da vitória”. Nisso era o oposto de Merckx, o Canibal. Agora correm ambos, de novo, lado a lado, para o mundo ver qual dos dois gosta mais de viver. Apenas viver.