Ateneu Comercial de Lisboa. O impasse de um edifício que se diluiu no tempo

Ateneu Comercial de Lisboa. O impasse de um edifício que se diluiu no tempo


O Ateneu Comercial de Lisboa está na mira da Vogue Homes para um projeto residencial. Mas o edifício está também em vias de ser classificado pela DGPC, o que poderá dificultar o processo quando se falar em obras, já que as regras ficam mais apertadas. Entretanto, o Ateneu vai morrendo aos poucos e até os…


O Ateneu Comercial de Lisboa tem o poder de se transformar e essa capacidade de metamorfose já fez do edifico datado de 1880 uma escola, um ginásio e um espaço de arte e cultura. Em plena rua das Portas de Santo Antão, as paredes, os tetos, os candeeiros dignos de museu foram-se perdendo ao longo do tempo e hoje, o que resta da identidade do Ateneu Comercial de Lisboa, mesmo à frente do Teatro Politeama, não é mais do que paredes e tetos com história sem capacidades para ditar um futuro. Pode agora ser um edifício residencial, mas os processos de insolvência, as irregularidades na gestão e a degradação profunda vão deixar marcas. A par da nova vida que poderá ser dada ao Ateneu, o Palácio dos Condes de Povolide, onde se integra o Ateneu, está em vias de ser classificado pela Direção-Geral do Património Cultural (DGPC).

As portas do Ateneu fecharam em 2012. Sete anos depois, pode voltar a abrir, mas desta vez pelas mãos da empresa Vogue Homes – responsável por empreendimentos na área do imobiliário em Lisboa e Porto. Em julho deste ano, Joaquim Faustino, presidente do Ateneu Comercial de Lisboa, informou que, finalmente, o espaço vai voltar a receber visitantes, o que permitiu ir “ao encontro das melhores expectativas, pois a alternativa era o clube ficar sem sede, fechar de vez e extinguir-se definitivamente”. 

O investimento pretende “manter a presença e atividade” do clube e, “com a aceitação da proposta junto do atual parceiro e investidor local será possível manter a sede do Ateneu nas suas históricas instalações, preservar algumas das suas atividades lúdicas e associativas bem como manter todo o seu espólio”, referiu o presidente do Ateneu. 

Na altura pensava-se que o Ateneu Comercial de Lisboa iria ser um hotel, mas, há cerca de duas semanas, a sociedade de investimento e gestão imobiliária avançou com a gestão de 14 ativos no valor de 250 milhões de euros e com o início de quatro projetos imobiliários – um dos quais é o Ateneu. Mas Joaquim Silva Lico, CEO da Vogue Homes, desmentiu que fosse esse o destino a dar ao edifício. “O Ateneu vai ser transformado num projeto residencial que visa trazer vida não só ao edifício emblemático, mas também a uma zona que tem pouco residentes”, explicou Joaquim Silva. 

Além disso, segundo a Vogue Homes, daqui a um tempo – ainda indefinido, já que não há data para início das obras – o Ateneu terá também um museu “para exibição de todo o seu histórico espólio” e ainda “um local, também inserido no palácio, com vista ao desenvolvimento das suas atividades”.

Resta saber se o processo de classificação por parte da DGPC – que ainda não está concluído – não poderá colocar entraves às obras necessárias para dar uma nova vida ao Ateneu. A ser classificado, qualquer intervenção no edifício fica sujeita a aprovação prévia da DGPC e às restrições previstas na lei para os bens patrimoniais classificados. Por exemplo, o chão, o teto e a fachada não poderão ser alterados. A propósito, em março de 2018, a Câmara Municipal de Lisboa classificou o Ateneu como “Entidade de Interesse Histórico e Cultural ou Social Local”, uma distinção cujo objetivo seria proteger os imóveis do regime de arrendamento. 

A Vogue Homes salta à vista no mercado imobiliário pela reabilitação de prédios antigos e degradados, transformando-os em empreendimentos de luxo. Os edifícios residenciais restaurados e vendidos pela Vogue Homes multiplicam-se pela capital. Por exemplo, a empresa avançou, em 2018, com a reabilitação do edifício Intendente 48 – em tempos o Palácio do Intendente Pina Manique – que se encontrava num estado de degradação profunda.

O impasse A conversão do Ateneu num espaço residencial já tinha sido avançada pelas antigas arrendatárias do bar chamado Primeiro Andar, que em 2016 alertaram os deputados da Assembleia da República para a especulação que existia à volta daquele edifico e para a possibilidade de transformar o Ateneu num hotel. As incertezas relativamente ao Ateneu Comercial de Lisboa são constantes e, desde 2012 – ano em que foi declarada insolvência -, que o futuro do Ateneu é uma incógnita. Aliás, já em 2012, a propósito do processo de insolvência, o i avançou com a possibilidade de converter o Ateneu numa unidade hoteleira. 

Classificado como Instituição de Utilidade Pública, em 1926, as dívidas relativas ao edifício ultrapassavam então os 300 mil euros, mas em 2015 eis que surge um mecenas para resolver a situação do Ateneu: Adriano Roberto Lourenço, um sócio que começou a comprar as dívidas, acumulando, para si, os direitos que tinham os credores. Mas havia uma curiosidade: à exceção das entidades públicas, Adriano Roberto Lourenço conseguiu comprar as dívidas a um valor muito inferior àquele que era antes pedido.

Esse facto chamou a atenção de alguns sócios, que alertaram para uma outra situação: a constituição das listas da direção do Ateneu relativamente ao mandato do período de 2016 até 2019, em que as relações familiares eram visíveis. 

Ao i, um dos sócios referiu que “as listas foram constituídas para fechar o Ateneu e servir interesses pessoais”. Aliás, só em fevereiro de 2019 é que a atual direção informou os associados que iria “reunir em Assembleia Geral ordinária” para “apresentação das Contas dos Exercícios dos anos de 2012 a 2015, respeitantes ao período da insolvência ” e para aprovação das contas de 2017 e 2018. Perante contas que englobavam vários anos, os associados referiram que não estavam “em condições para apreciar matérias tão sensíveis e que estranhamente desconhecem os motivos de ainda não terem sido apresentados”. 

As desconfianças do processo de insolvência chegaram ao Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) em 2016, na sequência de uma queixa das proprietárias do bar que funcionava nas instalações do Ateneu. A investigação por alegada gestão danosa no processo de insolvência surgiu quando as únicas arrendatárias do espaço referiram que o valor da dívida se mantinha ao longo dos anos e nada era feito para pagar os valores que levaram o Ateneu à insolvência. Ao i, um dos sócios referiu que o objetivo do administrador de insolvência nunca foi recuperar o espaço e pagar as dívidas, mas sim vender o edifício para criar uma unidade hoteleira.

Os desaparecimentos A degradação é visível e as tintas dos grafittis foram, ao longo dos anos, tomando conta das paredes do Ateneu e de uma piscina que encerrou em 2011 – espaço de competições. Uma Universidade Sénior ainda chegou a funcionar lá, assim como a Escola de Medicina Tradicional Chinesa, aulas de yoga, exposições, tertúlias, apresentações de livros. Como tudo o que passa pelo Ateneu parece estar condenado, o paradeiro de algum do recheio está em parte incerta.

Segundo o i apurou, não existe qualquer inventário dos objetos que pertencem ao Ateneu. Em 2012, Joaquim Faustino referiu durante a assembleia de credores que, no meio dos milhares de livros que tinha a biblioteca do Ateneu, estava um volume de Os Lusíadas “que de tão valioso deveria estar na Torre do Tombo”. Sete anos depois, ninguém sabe onde está o referido volume.

Alguns sócios dizem que foi roubado e, como as palavras de Camões, foram também levadas outras peças de valor – candeeiros e louças datados do século passado. No fundo, ninguém poderá saber exatamente o que falta no interior do Ateneu, porque também nunca se soube o que realmente esteve lá. De acordo com um dos documentos a que o i teve acesso – relativo a uma queixa de um dos sócios – um dos candeeiros de cristal foi avaliado em 150 mil euros, enquanto a edição de Os Lusíadas valia mais de 100 mil euros.