O 18 de Brumário (re)visto de Tormes


A História não se repete primeiro como tragédia e, depois, como farsa. Ela repete-se simultaneamente e a maior tragédia está na simples repetição, porque não aprendemos.


No final de setembro estive na Fundação Eça de Queiroz, em Tormes, a convite de uma querida colega, e fui lá muito bem recebido pela organização do evento, pelos companheiros de mesa e por todos os presentes (um grupo de advogados e outros, juristas e não juristas). Um fim de dia para mim muito enriquecedor e prazeroso, apesar do tema que lá me levou: a frustração e a erosão das finalidades da instrução penal, na lei e na (nalguma) cultura judiciária, numa tendência que tem crescido desde o nascimento do código, em 1987, e que já me levou, em dia de hipérboles, a publicar um “obituário da instrução”. Mas não é sobre isso que quero aqui alinhar umas palavras. É, sim, sobre retratos, os desenhados pela pena de Eça. Nesse dia, apenas o citei duas vezes. Uma, a respeito da influência alemã no nosso direito penal (em sentido amplo), e recordei a sua frase acerada em O Francesismo, onde dizia que Portugal era um país traduzido do francês em calão. E a essa citação juntei, entre o mais, uma afirmação igualmente provocadora, a de que o nosso Código de Processo Penal, de 1987 e ainda vigente, é essencialmente – por razões teóricas e também, e muito, históricas – um código “do” Ministério Público (sim, é, para quem quiser ver, e dedicar-se a pensar no contexto histórico e sociopolítico da sua gestação). E citei-o uma segunda e derradeira vez para deixar uma nota de esperança, num teimoso otimismo da vontade (que várias vezes me assalta), tendo dito que sou daqueles que alinha pelos estudiosos que veem no final d’Os Maias, quando Carlos da Maia e João da Ega perseguem um “americano”, um sinal de crença nas possibilidades construtivas do futuro.

Depois, já noite, saindo de Tormes pelas curvas da estrada até ao Peso da Régua, fui-me lembrando de tantas outras passagens, de muitos retratos, de sentenças acertadas, de frases fulminantes, tudo saído da escrita de Eça, de que tanto gosto. E de como, mais de cem anos depois, muito do que escreveu podia ser de agora (nada de novo, já vários o reconheceram). Por exemplo, certos traços sobre a imprensa retratada no Palma Cavalão, ou sobre a cultura urbana em A Capital, pontos de hipocrisia e públicas virtudes em O Crime do Padre Amaro, a boçalidade enfatuada que caracteriza os seus dois Dâmasos, o cabotinismo de algumas personagens n’Os Maias ou nas cartas de Fradique, a cupidez de tantos em alguns dos seus contos, novelas e romances, et cetera. E O Conde de Abranhos, esse impiedoso (e delicioso) retrato de uma mediocridade política e social, ou O Primo Basílio, que põe a nu, por exemplo, duas coisas tão portuguesas e tão pequenas (outras há que são grandes, claro, não me dou por vencido, muito menos da vida), tidas por virtuosas, mas tão “poucochinho”, o paroquialismo e o desenrascanço, quase tão caricatos quanto os revelados nesse livro memorável que é O Soldado Prático, de Diogo do Couto, escrito séculos antes.

E, ao chegar à Régua, perante a majestade misteriosa do Douro, dei-me conta de que Eça, talvez sem querer, nos mostrou, para todo o sempre, que Karl Marx só estava parcialmente certo, pois, ao contrário do que este sentenciou em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, a História não se repete primeiro como tragédia e, depois, como farsa. Ela repete-se simultaneamente como as duas coisas e a maior tragédia está na sua simples repetição, porque não aprendemos. Nunca aprendemos. Valha-nos a delícia da farsa, ou a nostalgia gostosa (conquanto triste) de Jacinto, pelos caminhos verdejantes de Tormes.

 

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