Um fósforo rápido, a arder. É isso a ficção televisiva aos olhos de quem, no cinema, foi construindo um percurso assente em projetos independentes para os quais se conta com o tempo de quem faz por vontade, sem pressa demasiada, sem o peso da estrutura de uma grande produção. Assim se têm vindo a fazer, ao longo dos últimos anos, os realizadores André Santos e Marco Leão que, de um percurso já solidificado na curta-metragem, saltam esta noite para os ecrãs que às 22h30 estiverem sintonizados na RTP1.
Quando, em 2003, a indignação de um grupo de mães que, desesperadas para salvar os seus casamentos iniciaram uma cruzada pelos chamados bons costumes, contra bares de alterne e prostitutas locais, virou escândalo de proporções desmedidas, André Santos e Marco Leão eram pouco mais do que adolescentes. A verdade é que o caso das “Mães de Bragança” tem repercussões até hoje – tanto que, a partir dele, Patrícia Müller escreveu uma série – Luz Vermelha, a estrear esta noite, na RTP1 – que, aceitando o desafio da produtora (a Vende-se Filmes), aceitaram realizar.
Em 2003, as vozes dessas mães foram ouvidas. Cruzaram o Atlântico, foram capa da Time. Em 2019, a André Santos e Marco Leão interessa ouvir as outras. As que então foram silenciadas, como continuam agora. “O caso das ‘Mães de Bragança’ tem um lado que para mim é político”, começa André Santos. “O que aconteceu muito na altura foi que as pessoas se dividiram em dois pólos muito distintos: houve o ‘coitadinhas das mães, estas mulheres traídas pelas prostitutas malvadas que lhe vêm roubar os maridos. Mas do outro lado também estavam pessoas. E, honestamente, quando olho para este caso, penso ‘mas que casamentos é que estas pessoas tinham?’. É muito fácil estar a acusar as prostitutas de destruírem um casamento que provavelmente já estava destruído. Quatro mães que se juntam numa cruzada contra a prostituição? O que é isto? Pensem no que se passa nas vossas vidas, porque aquelas senhoras estão a ganhar a delas”.
Se em Luz Vermelha a Bragança com as suas mães e prostitutas as referências são apenas isso, referências – nos primeiros episódios, é lida a célebre carta das “mães”, mas a série não chegou sequer a ser rodada na região -, o espaço que prolongar o contar de uma história por 13 episódios de 45 minutos quiseram então usá-lo para dar espaço às personagens – sobretudo àquelas que, na oportunidade para o gesto político que encontraram na realização desta série, continuam, ainda hoje, a não o ter.
E acrescenta André Santos sobre o desfecho de um caso que, em Luz Vermelha, procuraram apresentar como uma metáfora para a sociedade portuguesa: “Os bordéis que fecharam em Bragança passaram para Espanha, junto à fronteira, e os senhores, com um bocadinho mais de dificuldade, continuaram a fazer os seus trajetos. Manteve-se tudo igual. Isto é o Portugal dos brandos costumes. Para mim é uma metáfora gigante para a forma como vivemos: afastas da vista, o problema está resolvido. Não está. Porque o problema está na tua casa, não está na vida dos outros”.
Mas vamos à história. A história que, a partir do guião e ideia original de Patrícia Müller, levaram para todos os lugares que havia que imaginar. À noite, entre néones, num Sela, o nome do bar, certamente mais agradável do que seria um bar de alterne do interior português dos anos 2000. Um lugar comandado por um Joaquim Monchique num raríssimo registo de um rude e trapaceiro dono de bordel. E isto é 2003, isso é certo, mas um 2003 que se expande, pelo tempo.
“Quisemos que houvesse o suficiente [de informação] para nos colocar em 2003, sem que isso fosse impositivo. O Sela é um espaço completamente idealizado. Pensámos no que seria um bordel na nossa cabeça e inspirámo-nos no Black Lodge do Twin Peaks. Quisemos que tocasse synth-pop no bar, pedimos ao Bruno Cardoso [Xinobi, aqui responsável pela banda sonora] que criasse uma sonoridade que não fosse uma coisa fechada numa década, que tivesse traços de agora, daquela altura, e que acima de tudo tivesse um lado easy, um lado cool”.
De dureza bastará o que se sabe, o que se vê e o que se imagina da vida de um grupo de mulheres que, contra as regras dos ‘bons costumes’, ganham a vida pelo sexo. Não precisaremos de ver Andreia (Sara Norte) ser espancada para perceber o que veio depois da pergunta de Benício (Afonso Pimentel), numa forma de gorila de serviço, e antes fosse apenas isso: “Sabes porque é que os elefantes não gostam de andar à porrada?”. Pior do que isso, será ver, mais tarde, as marcas que isso deixa. “A história em si é tão depressiva, tão pesada, que quisemos que tivesse cor e que os ambientes sonoros tivessem uma presença”, remata André Santos sobre as opções estéticas.
Que não terminam por aí, num trabalho que os realizadores se orgulham de, no curto tempo que são dois meses de rodagem, terem sido capazes de não largar até ao fim. “No outro dia, parámos para rever o que tínhamos escrito nas notas de realização e percebemos que tínhamos conseguido fazer tudo o que estava lá descrito”, recorda. “A falta de profundidade de campo, a perspetiva da câmara [muitas vezes acima das personagens], o mise-en-scène, o trabalho com os atores”.
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Se série que a RTP1 estreia esta noite é um exemplo acabado, ainda em contracorrente, de que, na ficção televisiva, nem tudo tem de ser “televisão” – André Santos e Marco Leão conseguiram-no numa cuidadosa gestão de equilíbrios entre o possível e o impossível – parte disso deve-se à boa dose de risco a que o cinema se aventura no formato em que se fizeram realizadores: a curta-metragem. Os riscos que correram, com os riscos que a produção e a RTP aceitou que corressem.
Outra parte, uma boa parte, deve-se ao trabalho com os atores e atrizes. Porque de nomes como Joaquim Monchique, Margarida Vila-Nova (no realismo da cara lavada que ajuda à dureza do papel de jornalista incómoda), Sara Norte, Adriano Carvalho, João Lagarto, Dinarte Branco, Maria João Pinho, Sofia Nicholson, Cecília Henriques ou Bruna Quintas, chegaram também a um punhado de atrizes brasileiras que ao projeto trouxeram muito mais do que isso.
Ao casting para a parte brasileira do elenco (todas prostitutas do Sela), responderam várias mulheres brasileiras que estão a desenvolver, também elas, projetos relacionados ou com o caso de Bragança ou com a prostituição. Nalguns casos, vítimas, ainda hoje, do preconceitos que, da Bragança de 2003, chegou aos dias de hoje. Renata Ferraz, por exemplo, que interpreta Daiane, está a terminar um doutoramento e a fazer um filme em conjunto com uma prostituta brasileira; Tati Pasquali (Daisy, na série) tinha realizado todo um corpo de pesquisa para um documentário em que está a trabalhar sobre o caso de Bragança. E comenta Marco Leão: “Foi muito interessante porque eram pessoas que tinham coisas para dizer sobre isto, que tinham coisas a acrescentar”.
Com todas elas, os realizadores sentaram-se construindo histórias, passados, vidas interiores que resultaram nos planos em 4:3 que, como intervalos, vão pontuando a narrativa. “Acordámos com a Patrícia [Müller] que esses momentos funcionariam como uma espécie de confissão para o espetador, ou como se a personagem falasse consigo própria sobre o que a aflige no momento ou qualquer coisa que seja pertinente para o que está a ser visto. Vimos aqui uma oportunidade para dar voz às personagens às quais era dada menos oportunidade para falar: as trabalhadoras do sexo”. E remata André Santos: “Acho que é mesmo importante isto, porque os trabalhadores do sexo continuam a ser marginalizados. Sejam prostitutas, sejam pessoas que fazem pornografia”, um tema que tratavam já na curta Self Destructive Boys, (2018).
“As pessoas continuam a olhar para quem trabalha nestas áreas como sendo o outro, um outro que está distante porque faz uma coisa com a qual ninguém se quer relacionar. Enquanto continuarmos a olhar para o outro como sendo ‘o outro’, sem pontos de ancoramento, as pessoas vão estar sistematicamente a criar ideias preconcebidas. ‘Aquela pessoa faz aquilo, não tem nada a ver comigo’. Claro que tem. Somos todos pessoas”.