Foram os americanos a universalizar a expressão: “four-eyes”. Quatro-olhos. Depois, bem à portuguesa, fomos encolhendo: quatr’olhos, ou catrolhos. Na minha meninice, quem usava óculos era um caixa-de-óculos. Menos irónico, mas talvez igualmente incomodativo para os que tinham de andar de lentes penduradas nas orelhas. Pode ser que o sentido original tenha sido o de ridicularizar, faz parte da raiz da maldade humana, mas não cairá certamente para lá da fronteira do insulto. Até porque o tempo vulgarizou os óculos da mesma forma que a idade que foi caindo sobre os da minha geração nos obriga, agora, a sermos todos, praticamente, uma grande família de quatr’olhos.
Claro que, hoje em dia, a caixa-de-óculos assume proporções e design de tal forma burilados que quase parece fazer parte da fácies. Já para não falar desse disfarce mágico da dioptria que se chama lente de contacto. Antigamente, os óculos de massa, grossos e pesados, eram tão visíveis como desconfortáveis. Ver um jogador entrar em campo com aquela espécie de armadura não se podia comparar ao que aconteceu com o holandês Edgar Davids, por exemplo, que mais parecia um esquiador do que um verdadeiro quatr’olhos.
A nós, para quem o futebol só entrava em casa, pela televisão, às pinguinhas – uma final da Taça de Portugal; uma final da Taça de Inglaterra; as finais europeias; com muita, muita sorte, talvez um jogo das eliminatórias mais adiantadas da Taça dos Campeões; e, aos sábados de manhã, um joguinho entre Académica e Leixões ou Vitória de Setúbal e Barreirense, pelo rondar do meio-dia –, os quatr’olhos ficavam na memória.
Recordo-me de alguns. Jef Jurion, por exemplo, que chegou a jogar em Portugal, pela seleção da Bélgica, parecia um professor de catequese. A miopia, o astigmatismo ou lá o que era que fazia com que se batesse contra os adversários através de umas lentes com o seu quê de vulnerável não lhe afetava a pontaria. No Anderlecht, com o qual foi campeão da Bélgica por oito vezes, ganhou duas vezes o prémio para melhor marcador do campeonato. Um pontapé certeiro frente ao Real Madrid, em 1962, dando a vitória à equipa de Bruxelas por 1-0 depois de um 3-3 no Santiago Bernabéu, foi tão festejado como qualquer título, pois garantia a passagem à segunda ronda da Taça dos Campeões. Jurion foi, a partir daí, apelidado de Mister Europe.
Já o inglês Nobby Stiles, do Manchester United, era um quatr’olhos mais reservado. Geralmente mantinha as cangalhas ao serviço da sua vida particular e, de quando em vez, nos treinos, provavelmente para tentar espreitar mais firmemente através dos frequentes nevoeiros que lhe atrapalhavam a visão lá para os lados da mancuniana Cottonopolis. Durante os jogos deixava os óculos na cabina. Claro que Stiles, apesar do nome muito estilístico, era o que se pode chamar um incorrigível arranca-pinheiros, pelo que não precisava de ajustar a graduação para bater na própria sombra ou, pelo menos, em tudo o que se movimentasse à sua frente, mesmo que não passasse de um vulto mal definido. Eusébio ficou a sabê-lo na pele, sobretudo na final da Taça dos Campeões de Wembley, em 1967, quando durante os primeiros 20 minutos foi insultuosamente caçado a patadas como uma ratazana. Tendo uma falta de incisivos muito espetacular, Stiles talvez tivesse pudor em juntar ao buraco negro entre beiços que lhe surgia a cada sorriso a prescrição do seu oftalmologista. Uma questão de estilo, vá lá.
Annibale Frossi, jogador da Ambrosiana (atual Inter de Milão), medalha de ouro com a Itália no torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de 1936, foi um caixa-de-óculos clássico, ao estilo Fernando Pessoa. Também ele provou à saciedade que não é fundamental ver perfeitamente para meter a bola no fundo da baliza, tendo-o feito contra a Áustria na final de Berlim, assinando o resultado: 2-1.
Holandeses Muito antes de ter existido Davids, já eu me deixava encantar por dois valentes quatr’olhos do Feyenoord campeão europeu de 1970. O capitão, Rinus Israel, tinha o seu quê de vaidoso. Aparecia nas fotos de equipa com óculos, mas nunca os levava para dentro do campo. Por seu lado, um dos seus companheiros da defesa, que não jogou na final contra o Celtic, não dispensava as lunetas em lado algum. Chamava-se Joop van Daele. Tinha a alcunha de Joop-Faz-Tudo. Era, à sua maneira, um bruto, e as lentes de fundo de garrafa não o eximiam dos confrontos físicos mais violentos. Quanto cometeu o atrevimento supremo de, em Buenos Aires, marcar aos Estudiantes o golo que deu ao Feyenoord a Taça Intercontinental, o argentino Oscar Malbernat arrancou-lhe os óculos e atirou-os para o relvado, onde, indefesos, foram pisoteados pelo seu companheiro de equipa Carlos Pachamé. Oscar espetou-lhe o indicador no nariz desamparado de aros: “Não podes jogar com óculos! Aqui não!”
Que remédio teve Van Daele se não disputar o resto do encontro sem eles. Mas o golo estava feito e mais decisivo não poderia ter sido. Divertidos, nas bancadas, os adeptos holandeses cantavam alegremente: “Waar is de bril van Joop van Daele?” – “Onde estão os óculos de Joop van Daele?”
Neste momento, no museu do clube. Ainda partidos…